maio 03, 2007

A concha e o cajado

Acho que você já ouviu falar do caminho de Santiago, não?
Trata-se de uma rota de peregrinação que leva a Santiago de Compostela, partindo de vários pontos da Europa, daí os vários nomes: caminho tradicional, rota da prata, litorânea, caminho português etc...
Os brasileiros preferem, quando podem, fazer um caminho que parte de Saint Jean Pied-de-Port na franja francesa dos Pireneus e seguir pelo norte através do país Basco, Navarra, Castela e Leon chegando finalmente na Galícia onde após assistir a missa do peregrino e pegar o certificado de conclusão na diocese com o título de “Dom” o caminhante parte para Finis Terrae, um belíssimo cabo considerado um dia o ponto mais distante de Roma, onde queimará num ritual etílico as roupas suadas e imprestáveis num ritual que simboliza um novo nascimento.
Uma vez que você esteja em qualquer ponto sobre uma rota que leve a Santiago, será muito fácil reconhecer um peregrino:
- Pelo cheiro – Vai de passarinho molhado a rato morto
- Pela concha de Vieira, um marisco freqüente nas costas da Galícia, pendurada na mochila ou em algum ponto invisível.
- Pela marcha, entrecortada pela dor causada pelas bolhas nos pés.
- Pelo indefectível cajado que auxilia a marcha e onde freqüentemente se pendurava a cabaça com água.
Foi assim que, motivado pela expectativa de uma boa viagem de cunho histórico, gastronômico, enológico, arquitetônico e de lazer (paisagem, caminhada e interação entre pessoas do mundo inteiro), aceitei o convite de um amigo lá pelos idos de 2001.
Todos os aspectos do caminho me pareceram, sempre de pronto, muito naturais exceto um...O cajado!
Pô (pensava), eu ando super bem, não sinto nada nas pernas, ora, não vou carregar cajado coisa nenhuma!
Comecei a caminhada animadíssimo a vivenciar tudo que aquela aparente maluquice (caminhar 800 km!) pudesse me proporcionar exceto, carregar o cajado!
Incrível como mesmo depois de velho, abrimos espaços para bobagens.
E lá vai Morpheus, pilotando Manellis; subi e desci os pireneus, tudo bem; passei por Pamplona (andando e observando as pessoas com os cajados) até que em meio a um bosque lindíssimo, atravessado em meu caminho, estava lá, como que a me esperar, um cajado novinho! Com ponta de metal e tudo!
Olhei em volta, não havia ninguém; acelerei o passo e ofegante me dei conta que aparentemente não havia viv’alma nos arredores, muito menos que parecesse ter perdido um cajado. Olhei para o achado com um ar de desprezo mas, no entanto carreguei até mais à frente quando, juro por tudo, involuntariamente o deixei por descuido ao lado de um quiosque de bebidas onde tinha entrado para comprar água. Quilômtros à frente, me dei conta do ocorrido e me recriminei, levemente é verdade, e segui em frente. Segui o caminho e pouco antes de entrar na Galícia cheguei, sozinho, ao meio-dia, num vilarejo super quente onde uma pracinha, aparentemente recém-reformad, dava boas vindas aos peregrinos passantes oferecendo um bebedouro e a sombra de algumas árvores. Bebi água e sentei num banco após o que, estendendo meu braço pelo encosto para descansar os ombros do peso da mochila, encontrei às cegas, encostado na árvore que me sombreava...um cajado!
Coincidências das coincidências, acima do cajado, entalhado na árvore, escrito em letras grandes, lia-se: HECHO PARA USTED!
Isso era demais!
A fome, o calor, a saudade de casa e aquele cajado encostado na árvore era tudo que uma pessoa comum precisava para entrar num banzo místico!
Mas não eu, o agnóstico mais teimoso daquele trecho do caminho.
Olhei à minha volta e não vi ninguém que pudesse se responsabilizar pelo cajado, aliás, como se diz em espanhol: nadie em la calle!
Tomei-o pela mão resoluto em não me desfazer e mal contemplava o seu cabo quando um cão extremamente mal-encarado resolveu me dar um susto avançando em minha direção!
O cajado novo mostrou serviço e eu mantive o cão à distancia com sua ajuda.
Maravilhado, me sentia curado de alguma doença.
À noite, encontrei o resto da turma no jantar e na saída, tendo notado que uma das pessoas mancava, perguntei pelo ocorrido e ela me disse que perdera seu cajado e após alguns quilômetros sentiu um entorse no tornozelo.
Oh não! Ofereci-lhe meu cajado recém-encontrado uma vez que não haveria maneira pela qual pudesse obter outro antes da partida na manhã seguinte.
Lá estava eu, mais uma vez sem cajado!
O dia amanheceu frio como sempre e após o café, partimos.
Alguns quilômetros depois, após um pantagruélico cozido maragato na cidade de Astorga descansado à sombra pelo bem da minha saúde, saíamos em direção à próxima cidade quando, sentado à sombra, um senhor me chamou por meu nome e me ofereceu um cajado novinho em folha!
Pensando que era um vendedor, repondi: gracias, no tengo plata!
Ele me olhou docemente e disse: toma hombre, no te custa nada.
Tive um paroxismo de imbecilidade e repliquei: no, no quiero, no necessito, vés?
O senhor me olhou grave nos olhos e eu me senti impelido a aproximar-me dele...
Foi quando ele arrematou (desta vez escrevo em português!): Olhe rapaz (mira chico), o cajado é um amigo; não devemos esperar precisar um favor para iniciar uma amizade (aludindo à minha pretensa independência), leve-o consigo, trate-o bem, ele vos fará companhia e espantará os cães!
Bem, a esta altura você deve estar se perguntando...
Se você não sabe, muito menos eu:
Quem era aquele velho senhor, como sabia o meu nome, por que tinha um, e apenas um, cajado à mão, como ele sabia do cão etc.
Conto-lhe apenas o final, o cajado seguiu comigo, voltou ao Brasil e hoje ocupa um lugar de honra em minha casa, como um amuleto anti-presunção e pró-amizade.


P.S. Esta não é nem de longe a história mais Gabriel García Marquez que lhes poderia contar dentre as vividas no caminho, mas se algum dia você ler algo incrível neste blog, pelo menos não vai poder se queixar de falta de precedente!

4 comentários:

Márcia Reis disse...

Mano,

Não é por acaso (vide sua história)que sou eu a primeira a comentar sobre esse texto.
Me emocionei, revivi os momentos, senti saudade e principalmente agradeci por tê-lo vivido.
Um beijo da sua amiga peregrina.
Márcia Reapcis

Anônimo disse...

Caro Manelis,aqui fala um companheiro da sua "viagem" ,demoro mas não tardo, li e gostei, tambem me emocionei pois foram os melhores momentos de minha vida,e que por sinal bem agitada, esse caminho magico mexeu com minha cabeça e mudou minha vida, bom reler fatos que vivencie.Um forte abraço Pascoliiiiiiiiiiiiiiiii. Falando em bom Marthanês,,

Cláudia Martins disse...

Boa tarde,

a minha curiosidade sobre o caminho de Santiago e o meu sonho de um dia o percorrer trouxeram-me até ao seu blog. Fiquei encantada!

Gostaria muito de poder entrar em contacto consigo e falar sobre esta peregrinação. Sinto-me a ser uma guerreira da luz e sinto em mim que percorrer este caminho faz parte de minha lenda pessoal.

Aguardo com convicção o seu contacto.

O meu email: miss_mexi@hotmail.com

Abraço,
Cláudia Martins

Manellis disse...

Olá Cláudia, tudo que vc escrever aqui me será encaminhado. Apareça!

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