Mal podia esperar!
Tinha 5 anos de idade e, enfim, haveria de passar aquele que seria o meu primeiro dia inteiro, inteirinho... na praia!
Tudo por causa de um convite feito quinze dias antes por um amigo de meu pai que estava de veraneio em Itapuã.
Se dependesse de mim, chegaríamos antes do café-da-manhã dos anfitriões, tamanha era minha ansiedade. Minha mãe, no entanto, tinha outros planos. Podíamos ir mais cedo sim, mas direto para praia. Faríamos, como se diz na Bahia, "uma horinha" para então "chegarmos" lá pelas nove ou dez da manhã na casa do capitão Gildásio, o tal amigo de meu pai.
Fiz um check list com tudo que poderia levar para usar na praia (brinquedos, é claro) e coloquei num saco para não esquecer de nada: bola, nadadeiras, vara de pescar, bóias, pázinhas e baldes etc.
Ao chegarmos, nos deparamos com a maré vazia e meus olhos brilharam diante da miríade de mini-piscinas cheias de peixinhos e caranguejos. Todo o apetrecho lúdico seria esquecido em detrimento de um item: a varinha de pescar!
O sol estava lindo e após um rápido reconhecimento de terreno, lá estava eu sentado na borda da melhor dentre todas as piscinas com minha varinha, linha e anzol e...opa... faltava a isca!
Putz... eu tinha esquecido a isca!
Nessa época, eu ainda não sabia que peixinhos tomam café-da-manhã e por isto não estava considerando uma solução que estava debaixo do meu nariz quando minha mãe disse: ora, use um pedacinho do pão que você veio comendo e não terminou.
Sábia, sábia!
Enganchei uma bolinha de miolo da ponta do anzol. Começava então a primeira pescaria da minha vida.
Fui perdendo pedacinho após pedacinho do pedacinho de pão até que... acho que no penúltimo: fisguei um pequeno peixinho prateado. Levantei o anzol à altura dos olhos e exultei. Por sua vez, o peixinho se debatia como louco na ponta do anzol enquanto eu ia sendo hipnotizado pelo seu balé agônico e cintilante sob o sol das oito e meia da manhã.
Veloz e gradualmente fui sendo tomado por um sentimento estranho ao imaginar que ele não veria mais nada além do meu rosto antes de ser asfixiado pelo ar. O mesmo ar que eu respirava com tanta naturalidade e prazer.
Nada mais de piscinas, caranguejos, algas ou outros peixes.
Aquela já não era mais apenas minha primeira pescaria mas também meu primeiro insight filosófico; denso, intenso, angustiante.
O anzol pareceu ter-lhe causado um ferimento rapidamente fatal e ele parou de se mexer poucos segundos a seguir. Comecei a me sentir muito mal e corri para debaixo do guarda-sol com o peixinho na mão sem que meus pais percebessem. Não consegui mais largá-lo durante toda a manhã, almoço e início da tarde. O cheiro do insepulto começava a ficar desagradável e as pessoas na casa do amigo do meu pai passaram a se revezar na tentativa de convencer-me a me desfazer do fruto da minha pescaria.
Eles não estavam entendendo nada!
A consciência sobre a brevidade da vida e o medo de morrer haviam me atingido como mísseis.
O dono da casa era muito simpático e brincalhão e se aproximou de mim com uma excelente proposta: dar um funeral decente ao infeliz peixinho no quintal da casa com direito a uma cruzinha e uma oração.
Pareceu-me mais do que razoável
Concordei e procedi o funeral em atitude de expiação.
Fizemos uma cruzinha com um palito de picolé e encerramos o caso para alívio de todos que não aguentavam mais o cheiro que empesteava a casa. Todos quer dizer... exceto meu pai que havia saído para comprar cigarros (sim, ele fumava).
Quando o vi chegar, resolvi participar-lhe do recém ocorrido e mostrar-lhe o local onde havia enterrado o peixinho com auxílio do capitão Gildásio.
Levei-o até cruzinha e disse: o peixinho agora está descansando!
Meu pai mal teve tempo de dizer "é mesmo?" quando eu, achando que ele duvidava, resolvi promover uma breve exumação comprobatória.
Abaixei-me e cavei freneticamente.
Cavei, cavei, cavei e...
Nada!
O peixinho tinha sumido!
Senti a presença do sobrenatural, fiquei perplexo, angustiado, tenso...
Meu pai olhou-me e disse que o peixinho devia ter ido embora para o céu e que certamente estava bem. Eu não sabia o que dizer e por isso nada disse. Voltamos para sala e continuamos o domingo de forma aparentemente normal.
Só aparentemente!
A minha cabeça fervilhava buscando lógicas às quais eu não tinha acesso.
O enigma do peixinho me perseguiu por muito tempo anos afora até que, bem mais velho, lembrei do episódio numa conversa com meu pai e o capitão. Eles caíram na risada e me disseram que, naquele dia, enquanto eu fui chamar meu pai, o capitão tinha trocado a cruzinha de lugar.
Como é?
Parecia que um disco rígido inteiro dentro da minha cabeça ia começar a ser formatado!
Não sei o que aconteceu, mas não aconteceu nada. O disco não parecia poder mais ser formatado. Bem ou mal eu não poderia ser regredido ao ceticismo.
Já tinha sido convertdo em uma pessoa mística.
Assim foi e continua sendo.
Graças a Deus!
Felizmente, não a ponto de impedir que eu escreva este texto no pós-prandial de uma deliciosa moqueca que preparei com minhas próprias mãozinhas.
Para vc que chegou ao final deste texto, eu deixo uma mensagem:
Coma menos carne vermelha!
P.S. Não esqueci dos relatos de viagem; Só não queria mesmo era deixar de contar esta história que me veio à cabeça quando me deparei com uma peixaria prá lá de sortida enquanto passeava pelo centro histórico de Bolonha!
Nenhum comentário:
Postar um comentário