fevereiro 06, 2010

NA ONDA DO MAR


A NOITE AZUL



Conto de Alexandre Figueiredo

Existia apenas o vento e a pressa. A tarde se recolhia em sombras, eu ouvia as palhas estalando com o vento e o ranger agudo da areia sob meus passos ligeiros. O suor porejava e escorria..., escorria muito. Calor...! Nas mãos, eu levava uma sacola plástica e uma grande garrafa com água, que tentavam teimosamente escorregar a cada passo meu. Sentia-me alheio aquele momento, eu não me sentia bem e não sabia exatamente por que. Um único pensamento persistia, revirava, ia e voltava sem parar: não atrasar o embarque.

Enfim cheguei. Depois de ouvir as merecidas repreensões, partimos com o Vaza-maré a toda. A maré não era de lua, mas secava rápido, e tínhamos que atravessar o canal antes da noite ganhar o mar e tingir tudo com seu negrume cru. Nosso caminho e destino eram o mar, suas trilhas infinitas e múltiplas, suas correntes, e seus cardumes.

Afastamo-nos rápido da vila, onde luzes amarelas se multiplicavam. O vento acompanhava a direção das águas e tinha um sopro constante. Algumas gaivotas emudecidas planavam preguiçosas, seguindo o rastro preciso da singradura. Samburás, redes, bóias, manzuás, cabos, baldes e velhos isopores se mexiam inquietos sobre o convés, esperando por ganharem seus lugares.

Eu estava já sereno, aquietado, e subi ao teto da cabine. Mantive-me recostado ao mastro assistindo à luz precoce da lua emergindo, enquanto pedia proteção e fartura, fazendo repetidos sinais da cruz no peito. A praia já ficava ao longe e a imensidão crescia e ganhava um tom escuro de azul cada vez maior. Seu Valdomiro comandava o barco fazendo repetidos vai-e-véns na roda de leme, nego Tião tentava organizar o convés de proa, e Tonho já se balançava deitado sobre uma das redes. A viagem até a marambaia demoraria.

Continuamos seguindo e o mar enegrecera por completo. Uma lua sorridente ascendia no céu da noite e grandes nuvens passavam ligeiras, levadas pelo vento. O Vaza-maré galopava na intimidade das águas escuras, borrifando fumaça e óleo queimado no ar.

Esfriou. Choveu leve e eu me encobri com uma vela, enquanto os outros procuravam abrigo no interior da cabine, onde a luz imprecisa do candeeiro lançava sombras disformes da imagem de Nossa Senhora dos Navegantes em todos os lados. Tonho havia jogado no mar os primeiros anzóis com tripa, só para testar a sorte. Tião terminou a arrumação e agora comia sua farofa. Seu Valdomiro intercalava goles de cachaça com uns tragos, enquanto cortava o mar. Um incomum silêncio permanecia estático. Vez por outra, pontos luminosos cruzavam o céu.
A precoce contemplação dos anzóis preludiaram uma noite boa. E os peixes, ainda se contorcendo, saíram do mar direto para frigideira do nego Tião.

Chegado à marambaia, Seu Val desacelerou e o Vaza parou entre pequenos balanços. Descemos as redes e, logo, começamos o arrasto. Nesse momento, palavras soltas surgiram: “Vamos..., puxa o cabo! Puxa o cabo!”; “Bombordo! Virar a bombordo, virar a bombordo!!!”; “Alguém liga a bomba de porão!!!”.
Eu permanecia atento as manobras, notando a lua dourada colorir o céu da noite em azul-turquesa. O vento esfriava e uivava no estaiamento, enquanto o mar, remexido pelas lufadas, começou a alimentar ondas ranzinzas.

Fizemos a primeira puxada e foi um susto geral. Nem as mais superlativas estórias de pescadores descreveriam algo semelhante. O inimaginável aconteceu: a superfície do mar tornou-se prateada dos incontáveis peixes que refletiam em suas costas a luz fria da lua. Nunca vi tantos! Eram o próprio mar! Pulavam e tremelicavam-se amontoados uns sobre os outros. A rede se contorcia pra um lado, depois pra outro, rangia, tensionada, bojada, inchada. Ensacava vários cardumes inteiros: Xaréus, vermelhos, pescadas, guaricemas, corvinas, cavalas, albacoras..., e se fosse maior, ainda abraçaria outros tantos que ficaram aos montes nadando nos arredores.

A rede foi sendo rapidamente recolhida “Obrigado minha Santinha...!” e os peixes embarcados. E eram tantos, subiam aos montes, que em pouco tempo, todos os lugares do Vaza-maré estavam cheios “Que bênção minha mãe do mar!”.

As bocas gargalhavam escancaradas... “Viva! Viva! Viva!” E cada vez mais peixes subiam. Havia sido pescado, em uma única puxada, a quantidade esperada para uma semana de duro trabalho. Era tamanha a sorte encontrar todos aqueles cardumes reunidos em um só lugar. O que faziam ali? A pescaria tornara-se uma festa, enquanto o vento e o mar, a olhos grossos, cresciam em tamanho e movimento.
Peixes transbordavam dos porões do barco e até o convés estava encoberto; e continuavam brotando a cada malha de rede recolhida. Era uma mágica, um espetáculo, uma fantástica surpresa! E mais, e mais, e mais...

Em um momento, quando o barco já estava abarrotado, ouvi um rangido forte, seguido de uma batida seca a sotavento. Senti um frio maior e paralisei. Observei por mais uns segundos e uma sensação estranha me cortou a espinha. Então, falei cuidadoso, sem querer estragar o momento: “Seu Val, já não há lugar para mais peixes! Temos que parar...!”. E o comandante rezingou curto: “Meu filho, eu é quem dou as ordens aqui!” E a inebriante pescaria continuou até não sobrar nenhum peixe na água. Chega colocaram tapumes de madeira sobre os guarda-mancebos para acomodar ainda mais bichos saculejantes.

As alegres vozes continuavam agitadas: “O que é isso?!”; “Peixes! Peixes! Peixes!”; “Quanta fartura...! Eu não acredito!”; em meio a gargalhadas, abraços e pinga. Longe da atenção dos outros, o vento tufou e o mar virou um gigante assustador. Eu não estava nem um pouco confortável. Voltei para o teto da cabine, para o meu lugar, o único livre daquelas sardinhas.
No segundo seguinte, percebi que as ondas passaram a se comportar estranhamente, ganharam força e tamanho e vinham de todas as direções, cada vez mais ásperas, ao nosso encontro. Chegavam silenciosas e engordavam a cada sopro maior de vento. Tinham o Vaza-maré como único alvo e estavam ávidas por ele. Passaram a conspirar.

Eu agarrava-me assustado ao mastro, enquanto os outros regozijavam dentro da cabine. O vento era forte, cegava-me, ensurdecia-me, imobilizava-me. E cada vez mais e maiores ondas chegavam e o barco ficava cada vez menor, jogado pra todo lado, como uma bóia inflável. Em um momento, Tião também expôs insegurança, perguntando se não seria melhor jogar fora parte do pescado. O comandante logo desfê-lo: “Meu rapaz, esse mar vai sossegar logo-logo! Olhe que belo céu! Que lua...! Fique tranqüilo...!”; e foi logo aumentando a potência do motor. O Tonho acompanhou-o: “É isso mesmo, não podemos jogar fora esse presente que a rainha do mar nos deu! É ofensa...!”.

Não demorou e chegou bem determinada a maior de todas as vilãs. Senti sua sombra se aproximando sorrateira, cresceu de repente, e se desfez inteira no costado do Vaza-maré. Inimaginável. Ela era negra, marmorizada por espumas e bolhas, robusta, ruidosa, sorrateira. Varria tudo a sua frente e, pra nosso infortúnio, estávamos nela. Com o impacto adernamos pouco a pouco até virarmos. Nosso barco, que vinha num balanço pesado e desconcertado, capotou por duas vezes no vazio do seu rastro.

Senti horror. Fui lançado no turbilhão, enquanto a embarcação continuava sendo sacudida. Submergi apavorado e logo senti a brava correnteza me puxando. Estava trêmulo, estarrecido, bestificado..., e as ondas continuavam quebrando sem trégua. E chegaram outras tantas mal-intencionadas em golpeá-lo, que nosso Vaza-maré esfrangalhou-se, desmanchou-se inteiro em pequenos pedaços. Olhei para o céu e lá estava o sádico sorriso lunar.
Os incontáveis peixes agora se espalhavam pelo mar e, como numa quebra de encanto, recomeçaram a nadar todos em um mesmo momento, muito vivos. E, ressentindo a liberdade, seguiram lépidos, subindo e descendo as ondas, como se surfassem à flor d’água, até desaparecerem por completo.

Era tudo estranho. Continuei ouvindo as gargalhadas de Seu Val vibrando entre as ondas, mas não vi mais nenhum deles. Sumiram também. Em um momento estava completamente sozinho sendo arrastado não sei pra onde pelas correntes. Posso dizer que eu girava, como num enorme carrossel sem alegorias. As ondas chegavam e partiam desordenadas. Cresciam por sobre o mar, caminhando ligeiro com o vento. Eram vivas..., águas vivas. Retorciam-se, esticavam-se inquietas por todos os lados. Por vezes, chocavam-se entre si gerando uma explosão de espumas e sal. Encenavam um fantasmagórico balé para um único expectador.

Eu estava no abismo. Sentia–me cada vez menor, sendo sugado inerte para o nada. Submerso num profundo vazio e completamente entregue. Não havia no que pensar ou o que fazer, sabia do absurdo. O medo já há muito havia virado desespero, e o desespero, de tão grande, arrefeceu, foi consumido, virou quietação. Meu corpo me enviava uma sensação estranha, desconhecida, tentei enxergar-me entre uma afundada e outra e não consegui. Tentei novamente e me vi, meio distorcido pela água, mas vi, muito certo, que eu estava ficando azulado. E esse azul foi crescendo, percorrendo-me, escurecendo até se misturar ao tom do mar, do céu e da noite. E eu não mais conseguia me separar, não via mais nada, só azul. Éramos uma só coisa.

Enfim o sol entrou pela fresta da cortina e eu acordei.


2 comentários:

Manellis disse...

Belê velhinho!
Muito obrigado pela ilustração literária.
Um presente para os vistantes até a minha volta pós-exílio carnavalesco.
Um abração e boas ondas

Manellis

Kássia Reis disse...

Fantástico! Parabéns ao autor do conto,Alexandre Figueiredo. Adorei o blog, uma viagem!! Muito bom isso aqui! Abraços!!

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