junho 19, 2009

Minha tia Nastácia chamava-se Martinha



Crônica de Alexandre Figueiredo


Eu seguia meu caminho conectado apenas à celeridade do tempo, quando passei por uma casa de carne e em sua frente vi exposto um anúncio escrito a giz: “Miraguaia, R$ 4,98”. Vi essa placa muito rápido, meio de soslaio e distraído, e foi o suficiente para que despertasse um turbilhão de lembranças não aparentes. Lembrei de Martinha. Com surpresa, percebi como um mísero anúncio de peixe-seco em promoção foi capaz de acionar em mim um circuito interno tão vasto e veemente.
É que essa era uma das iguarias preferidas dela, nossa eterna e única babá. E como há muito eu não voltava àquele passado, ainda não tinha a real percepção de quanto ela havia deixado em mim o seu imenso legado. Em mim e, por certo, em todos em minha casa.
Desde então não mais parei de pensar e repaginar os fatos passados. Ela protagoniza muitas das mais remotas lembranças, desde a primeira infância até os meus vinte e dois anos, quando chegou ao fim sua trajetória.
Adorava miraguaia, peixe vendido salgado nas feiras livres.
Fritava-o em óleo, depois de tirar parte do sal, salmoura que era, adicionava uma farofa de água, como chamava, depois muitas pimentas malaguetas. E misturava, amassando com as mãos, tudo num prato fundo. Depois comia calmamente, sentada no tamborete da cozinha. Suas mãos eram magras, e bem treinadas..., e com extrema habilidade, quase um automatismo, separava as infinitas e minúsculas espinhas do fritado. E comia com toda tranqüilidade, chega ficava lesada, absorta..., mastigando morosamente. Os mais chegados já sabiam como agradar: dava-lhe miraguaia! Amava...! E era bom ver o sorriso largo disputar espaço com o peixe afarinhado em sua boca...!
Suas lembranças me transportam a um tempo distante..., longínquo. A primeira delas tenho bem guardada: foi quando queimei os dedos, eu devia ter menos de quatro anos, pois lembro claramente ter ficado de ponta de pé para alcançar a panela em cima da pia da cozinha. Ela foi quem correu e me pegou, e já foi passando manteiga (seu remédio contra queimaduras) enquanto me levava até meus pais na sala. Acho que essa é a lembrança mais primária que tenho da vida.

Mais ou menos por essa época, seu quarto era repleto de fotos de jogadores de futebol, seus ícones sexuais. Eram várias..., lembro de Zico, Mozer, Junior, Sócrates, Toninho Cerezo fazendo parte da sua seleção. Recortava as páginas de revistas esportivas e colava direto na parede verde de frente à sua cama. O time do flamengo era o campeão em número de jogadores...! Também havia fotos do Roberto Carlos cantor num helicóptero...!
Duas vezes por ano ia visitar seus parentes no interior, nas festas de São João e do natal. Enchia-se de alegria nessas épocas, e já começava a ficar ansiosa e fazer seus preparativos ordenadamente desde o início do mês. Passava lá os festejos e os quinze dias seguintes, e na volta vinha sempre com as sacolas cheias de castanha torrada, beijú, jaca, pamonha, aipim, farinha..., também trazia de volta seu contumaz bom humor.
Ela era verdadeiramente da nossa família. Lá em casa era tudo: babá, cozinheira, faxineira, governanta, secretária..., e já chegou a sentar pra fazer a lição com a gente, apesar de mal saber ler ou escrever. Trabalhava muito, sempre ouvindo música romântica num radinho de pilha. Relembro de dois momentos do dia em que reduzia sua velocidade e entrava num estado de letargia: quando sentava no banco da cozinha pra almoçar, amassando a comida com as mãos; e quando, no fim de tarde, parava para assistir as novelas. Não perdia um só capítulo! Trabalhava muito, e apesar de fazer sozinha, dava conta de tudo e sempre terminava antes das cinco. E não recordo de vê-la queixar-se da vida, nunca em nenhum momento maldisse seu trabalho ou sua patroa.
Também tínhamos cadeira cativa na hora do sítio do pica-pau amarelo. Assistíamos todos juntos e era a melhor hora do dia. Todas as crianças faziam isso às cinco da tarde. Era muito bom...! E era bom imaginar-me naquele mundo, fazer parte das tramas ingênuas, brincar com Narizinho, Pedrinho, Emília, Visconde de Sabugosa; rir do Saci; temer a Cuca; ouvir os causos da Dona Benta e tio Barnabé; comer os bolinhos da tia Nastácia, personagem pela qual eu tinha mais simpatia. Não consigo imaginar minha infância sem eles e suas estórias fantásticas, e ao mesmo tempo repletas de aspectos comuns ao nosso cotidiano infantil.
Em uma época eu fazia muita bagunça em casa, e passava dos limites por inúmeras e repetidas vezes. E ela ficava brava, e resmungava, e dizia que ia embora pro interior, ia voltar pra casa da mãe. Dizia que eu estava impossível..., sempre evocando “São Binidito” entre as arfadas. Rezingava que nunca mais iria voltar. Esse seu apelo sempre funcionava e ela sabia bem quando utilizar. Ouvi isso dela era pior que qualquer castigo, eu me afogava em remorso, e logo ficava mansinho...!
Tinha o coração maior do mundo, e só tinha bondade nele, era uma amante das pequenas coisas da vida, das plantas, da sua casa, que era a nossa casa, da sua rotina, dos animais. Recordo com clareza de alguns bichos que tiveram a sorte de serem cuidado por ela: o cachorro Bolinha, um filhote de vira-latas, que viveu um tempo lá em casa cheio de mordomias a depois ela o levou para o interior; o pássaro-preto de minha mãe, que ela chamava de Nêgo e conversava como se gente ele fosse. Era tão íntimo seu que certa vez tirou-o da gaiola e fez-lo voar, acho que com a intenção de premiá-lo. Mas ela não imaginava que depois de anos preso ele não mais poderia desfrutar a liberdade e depois voltar para dormir em casa, como planejara. Aconteceu que ele, precariamente, voou até a casa do vizinho e depois ficou lá pousado na grade, paralisado, tremendo de medo até ela conseguir resgatá-lo de volta. Tinha ainda o azulzinho, um periquito-australiano com quem ela também conversava e andava pela casa com ele pousado em seu dedo.
Seu mundo era diferente, era a nossa casa, era a gente e nossa rotina diária de brincadeiras, escola e cuidados. Não havia lamentação, nem tristeza, seu tempo também era outro, não passava. Era sempre a mesma, de lenço na cabeça, vestido de chita, sandálias havaianas, unhas pintadas de vermelho nos fins de semana, a cor que mais gostava. Não saía de casa para nada a não ser comprar seu cigarro e sua garrafa de pinga. Bebeu e fumou muito, tudo sempre muito escondido da gente, lá nas entranhas do seu pequeno quarto. E foram essas suas fugas das frustrações da vida, humana que era!
Tanto seu tempo não passava que ela certa vez atendeu ao telefone uma namorada de meu irmão, na época já com dezoito anos, que perguntou quem estava falando, e ela, com a maior propriedade do mundo, disse: “É a BABÁ dele...”! Todos rimos bastante com esse episódio e o Marcelo ficou irado, claro!
Engraçado hoje recordar de algumas coisas... Como, às vezes, fingíamos tomar banho, ela desenvolveu uma implacável técnica para nos fiscalizar: cheirava nosso pescoço após sairmos do banheiro, conferia a umidade na toalha, marcava o tempo do chuveiro aberto... Não era fácil escapar. E se tinha uma forte suspeita do delito, éramos obrigados a reingressar no chuveiro. Contudo, também desenvolvemos nossos meios nada convencionais de limpeza e de quando em quando conseguíamos achar uma brecha em sua marcação. Na verdade, o troféu não era continuarmos com nossas sujeiras agarradas e sim conseguir enganá-la!
Lembro que de outra vez brigamos discutindo se abacaxi dava embaixo da terra ou não, eu insistia em dizer que era uma raiz e ela se divertia com minha ignorância urbana. De outras, arrancávamos seu lenço da cabeça só pra vê-la rezingar.
Todos nós éramos pura inocência.
Há anos sofria de doença de Chagas e seu coração cresceu muito até quase não caber no peito. E com o passar, ele foi adoecendo com mais freqüência; até que, numa manhã comum de primavera, parou de bater. E ela se foi como foi a sua vida: silenciosa, simples e serena.
Hoje carrego muito do que me ensinou, nos mais simples comportamentos domésticos, como na forma de cumprir as etapas do banho ou na hora de me servir à mesa, como em muitas coisas do dia-a-dia, do comer, do vestir, do organizar... Não tenho meios de precisar, mas certamente está viva também em meu caráter e em muito dos meus amados e simples valores.
Vejo que tínhamos uma tia Nastácia em nossa casa, não por seus dotes culinários, ou por seu colo gordo e macio; mas por ser repleta de paciência, de maternidade, de pequenas e grandes bondades, de fidelidade, de tolerância, de correção, de matutices, de amor, de enternecidos cuidados, de boa vontade, de simplicidade, de autêntica felicidade...
Minha tia Nastácia adorava miraguaia!
Grande Manellis,
É um grande prazer voltar ao Morpheus depois de tanto tempo.

2 comentários:

Manellis disse...

O filho pródigo à casa torna!
Parabéns pela crônica e pela volta a este cantinho da blogosfera.

Andrea Marques disse...

Texto lindo, lindo, lindo!
Ler Alexandre Figueiredo é resgatar também a minha infância, os melhores momentos da minha vida, as emoções e épocas que com ele compartilho.
Mais ainda: é poder acreditar que existem pessoas que valem a pena serem amadas, admiradas, queridas.
Que bom vê-lo aqui também!
Parabéns pelo blog.

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