agosto 07, 2008

Enquanto morpheus descansa...


...outros trabalham..., mas a vida é assim...


Venho aqui, depois de um longo tempo de hibernação e com enorme satisfação, mostrar a cara e um texto simples e que, claro, tem identificação com esse dia chamado "dos pais".



CRÔNICA DE PEQUENAS LEMBRANÇAS

Alexandre Figueiredo

Considerada minha pouca idade na época, as lembranças que tenho do seu convívio em nossa casa não são precisas. Volto alguns anos no tempo, tento provocar emoções passadas em minha infância e pouco me vem. Algumas imagens fugidias, vacilantes, surgem, mas me escapam com enorme celeridade, como cenas perdidas num abismo impalpável formado entre o tempo e a vida. Quando arrumou suas malas, eu certamente tinha entre sete e oito anos.
Mesmo assim, remexendo em minhas memórias, encontrei muito do que era e do que representa sua figura para mim.
Inesquecível a sua aparência, ainda hoje é a mesma: óculos pesados, um bigode grisalho, cabelos densos, sempre ajeitados de própria maneira, boca pequena. Possui uma curiosa capacidade de sorrir sem mostrar os dentes, sempre brandamente. Em seu corpo saudável, torneado por pequenos músculos, jaz uma antiga cicatriz de traqueostomia, que nem ele mesmo sabe exatamente porque está ali. Ouvi várias histórias de que outrora estivera pra "passar dessa para melhor", e que na época não sabiam qual cor de caixão comprar.
Ele conseguia ser pândego boa parte do tempo, principalmente nos fins-de-semana, mas por quase sempre era austero, calado e estrito; e, antes mesmo de analisar, no mesmo segundo, já nos dizia não antes de qualquer concessão às suas regras.
Com seu leve humor, costumava inventar ingênuas brincadeiras na intenção da gente (eu e meu irmão), da nossa babá, Martinha, ou de qualquer outro. Deixava copos cheios com água sobre portas semi-abertas e esperava que o distraído passante fosse surpreendido com o líquido gelado sobre a cabeça. Ou colava nas paredes de casa fotos dos parentes mais chegados, registradas em momentos de descontração, com anedotas de todo tipo a elas sublocadas. Também era hábil em inventar apelidos: Cataninha, Cotinha, Moqueca, Nega-brechó, Zefinha...
Foi dele que apanhei uma única vez quando criança, apenas alguns bolos por ter ido jogar bola após a aula, e chegar bastante atrasado e sujo em casa. Havia se preocupado com a falta de notícias.

Também lembro com concisão de algumas preferências suas: melão, nescafé, coca-cola, futebol domingo à tarde, Moraes Moreira, "os internacionais", brasília (teve de todas as cores)...
Meu pai era um amante da vida.
Em casa, tinha montado um verdadeiro escritório de contabilidade. Ele era um verdadeiro engenheiro de números. Eu admirava tanto a forma como organizava e estruturava seus balancetes, e organizava com tão bela caligrafia, que cheguei certa vez a preencher os meus cadernos com algarismos ordenados daquela mesma maneira.
No dia em que partiu não se despediu de nós, e também não lembro de ter ouvido nunca nenhuma palavra sua sobre esse acontecimento.
Recebi a notícia numa manhã lenta de verão, logo que cheguei ao quarto dos meus pais, como costumava cedo fazer. Lembro que minha mãe estava deitada, parecia acordada já há algum tempo. Seu olhar era lívido... Em sua companhia, eu via o quarda-roupas branco de puxadores floridos, o criado-mudo desarrumado, e a televisão arredondada apoiada num antigo suporte metálico. Com menos exatidão recordo de suas palavras naquele momento. Quis amenizar a notícia alegando que ele fora fazer uma viagem, contudo, com toda minha meninice, não foi difícil perceber que se tratava de uma separação, meu pai nunca viajava.
Era sim a separação entre ele e nossa casa.
Era certo que eu não tinha a exata noção do que significava, mas por um instante senti medo e, não lembro com precisão, acho que chorei. Tive uma triste sensação de não saber o que nos esperava na próxima curva de nossa estrada. Pressentia que ele não mais voltaria.
Continuei por algum tempo naquela cama, pra mim muito aprazível, envolto em lençóis deformados, nos pequenos travesseiros de minha mãe, e nos seus braços sempre tão maternos. Ainda podia sentir o vulto de meu pai cruzando a porta. Sofria uma sensação desconhecida de perda, uma espécie estranha e única de medo.
Apenas tinha vontade de ficar ali, esperando as horas caminharem, indefeso e seguro ao mesmo tempo. Logo meu irmão surgiu e compartilhou comigo aquele mesmo abrigo. Nada falou ou exprimiu, também preferiu o silêncio. E ficamos nós três juntos, apemas sentindo a presença um do outro.
Mais tarde, ainda lembro que recebi um telefonema de uma amiga de minha mãe, a Rosângela, dizendo palavras de amparo e se dispondo a ajudar naquilo necessário. O que só confirmou meu diagnóstico inicial.
Depois, o tempo fugiu e, como as crianças são cosmopolitas, logo nos acostumamos àquela nova condição, até porque ficamos dois meses na casa da minha avó Diva, longe da cidade grande. Esquecemos quase por completo o assunto.
Quando acabaram as férias, já morávamos em outro apartamento e reiniciamos as nossas vidas, bem diferentes, mas não menos felizes.

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