Estava no sexto ano de medicina e já tinha planejado um sabático no Tahiti com um dinheiro que ele não sabia ainda de onde iria sair.
Aquele dia era, por tudo isto, muito especial: era o último dia do último internato do último ano!
Mas não seria fácil; lá estaria nosso protagonista, frente-a-frente com o mais irascível, agressivo, misantropo e anti-acadêmico professor do departamento de cirurgia.
A última especialidade que escolheria para ganhar a vida como médico.
Bem, pensava ele, será apenas uma cirurgia e depois disso...o Tahiti!
Quando o professor/cirurgião/carrasco - Nome de batismo Ary Couteau, chegou ele já estava na sala de espera junto com outros colegas numa silenciosa prontidão para começar aquele último dia/obstáculo.
À sua chegada, todos se levantaram e o cumprimentaram. Estava ofegante pois um defeito de nascença tinha deixado-o com uma perna 15 cm mais curta e totalmente atrofiada. Os alunos foram cumprimentados rapidamente ao que se sucedeu uma pergunta com aparência de preparo prévio:
- Hoje é o último dia de vocês como estudantes, o que pretendem fazer?
Um a um, todos explicaram onde iam fazer suas provas de residência restando apenas o nosso amigo que, por timidez, foi antecipado por um dos colegas:
- O Pepeu não vai fazer prova em lugar nenhum, ele vai para o Tahiti passar o ano surfando!
Pepeu corou e baixou a cabeça. Sabia do caráter beligerante, vingativo e invejoso do professor que, além de deficiente físico, tinha acabado de se separar de sua paciente mulher que o deixara com as calças na mão.
O olhar de Dr. Couteau em direção ao envergonhado Pepeu não deixava dúvidas nem ao mais cego dos observadores: ele estava mortificado de inveja! Não tinha mais a idade de Pepeu, nunca tivera sua beleza física, não tinha dinheiro nem mesmo para passar o São João no subúrbio e a perna, defeituosa de nascença, jamais permitira-lhe sonhar com o futebol, surfe ou com a garota mais bonita do baile.
Por incrível que pareça, toda esta festa estava à disposição daquele garoto silencioso para quem o destino parecia ter reservado tudo de bom na vida.
Para ele, ilustre e pernóstico Ary Couteau, só aquele mundinho imundinho e as picuinhas de um departamento de faculdade de terceiro mundo e a companhia de colegas rejeitados pelo mercado naquilo que chamávamos de "O Chernobyl do bisturi".
Após intervalo breve, a enfermeira do centro cirúrgico abriu a porta e avisou que o paciente a ser operado já estava em sala devidamente anestesiado.
Todos pensaram: vai começar!
Pepeu, extremamente nervoso, se adiantou e correu para lavar as mãos planejando se colocar, antes que qualquer um, como instrumentador na posição mais distante possível do verdugo Couteau.
Uma frase do seu aforismário pessoal, no entanto, não saia-lhe da cabeça: "Se Deus marcou, preste atenção!"
Tinha lido-a num manual ocultista que atribuía aos deficientes físicos ou habilidades especiais ou um castigo kármico.
Sentia-se mal com a lembrança do preconceituoso aforismo mas este parasitou-lhe os pensamentos enquanto que, no piloto automático, executava a rotina planejada.
Lavou-se, paramentou-se e, quando buscava o fundo da sala por trás da mesa de instrumentos, foi interrompido:
A voz ofegante de Couteau convocava-o para ser o primeiro-assistente.
Tudo que ele menos queria!
A cirurgia, uma simples correção de hérnia inguinal, estenderia-se por infinitas 3 horas durante as quais o professou criticou e insultou tudo e todos num crescente de agressividade proporcional à inveja que sentia dos meninos.
A auxiliar de sala teve uma crise hipertensiva e teve que ser substituída tamanho o bombardeio de solicitações, insultos e comparações jocosas de baixo-calão.
Tudo que as pessoas comuns jamais imaginam que possa ocorrer num centro-cirúrgico, muito menos numa universidade.
Os estudantes suavam e tinham cólicas enquanto viam o tempo se arrastar ao longo daquele suplício interminável.
Pepeu, na linha de frente, era alvo de tudo de ruim que alguém pode ouvir de outra pessoa, a começar pelos prognósticos de fracasso profissional e a terminar pela desqualificação do surfe como um "esporte" de drogados e alienados.
O relógio se arrastava...
A fúria do professor aumentava...
Todos suavam e tinham cólicas...
Enfim, após gozações, esporros e ironias capazes de erodir a auto-estima de um santo, o martírio terminou. O paciente, sedado desde o início e alheio a tudo, foi o único que parecia surpreso com o final da operação:
- Puxa, acabou? Eu pensei que ainda ia começar...estava sonhando com Juliana Paes!
Um silêncio sepulcral tomou conta do ambiente e dos, agora, felizes ex-estudantes.
Por educação, medo, respeito ou o que quer que fosse, todos se dirigiram ao vestiário e, após trocarem-se, reuniram-se para esperar o elevador que os levaria ao térreo sempre na companhia do escrotésimo professor.
O elevador subiu até o andar e não abriu a porta; prosseguiu até o andar superior e repetiu esta rotina umas três vezes.
O silêncio, frente ao professor e após o massacre naquela que foi a última cirurgia do curso, estava cada vez mais constrangedor.
Balançando sua perninha atrofiada, o professor praguejou contra os elevadores e seu inventor enquanto olhava o dito passar mais uma vez ignorando-os completamente.
Estavam todos no 4º andar do vetusto prédio do hospital contruído no pós-guerra.
O elevador subia, passava e não parava.
Descia, passava e não parava.
O silêncio era insuportável
Principalmente para os garotos que jamais pretendiam compartilhar novamente os mesmos cinco metros quadrados com o, agora, ex-professor.
O manco professor, percorria periodicamente com um olhar de roleta os seus circunstantes como um rei que desfruta dos seus últimos instantes antes de ser guilhotinado.
Esta comparação me parece muito feliz pois uma navalha imaginária estava prestes a atingir o nosso vilão.
Como um piloto japonês que grita Banzai, Pepeu quebrou o silêncio e disparou na cara do carrasco que o castigara sem descanso durante toda aquela manhã:
- Com licença pessoal, o Tahiti me aguarda e eu vou de escada mesmo porque não sou aleijado!
e repetiu simulando um eco:
-EsCouteau? Couteau? Couteau?
...
O espanto tomou conta de todos enquanto Pepeu desaparecia veloz e aos saltos escada abaixo.
Aos colegas, estupefatose mesmerizados e extasiados com aquela lavada d'alma, coube carregar o professor apoplético numa crise mista de raiva e impotência da qual só se recuperou uma semana depois com um leve desvio da comisura labial esquerda e uma amnésia parcial que o poupou de lembrar-se do ocorrido em detalhes que ninguém, até hoje, teve coragem de rememorar-lhe embora, hoje em dia, o episódio "fictício" aqui desdobrado seja de domínio público.
Até onde eu sei, naquele ano o Prof. Couteau não fez sua tradicional capanha para paraninfo.
Sua ausência, como diria Nélson Rodrigues, veio então a preencher uma enorme lacuna.
Um comentário:
Morpheus,
Há dois anos num hospital desta cidade vi um R2 descer numa sexta feira pela escada enquanto um douto professor praguejava e insultava as paredes desertas do nosocomio, o R2 dizia "tô indo que não sou aleijado", exalava felicidade, e gozo.
Bom fim de semana, "o que seria de mim meu Deus sem a fé em Antonio"
DR. Tunico Galo Al'meeida
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