janeiro 30, 2008

Jajá e a amnésia

Não faz muito tempo, a tecnologia não estava tão presente nas salas de cirurgia como hoje; os cirurgiões tampouco tinham a sua disposição a compreensão e as técnicas modernas que temos agora. Quem tinha azia incurável estava condenado a perder o estômago; o câncer de mama era tratado invariavelmente com mastectomias que arrancavam não só a mama mas também os músculos peitorais mutilando as pacientes em nome de uma cura possível que não acontecia nunca porque a quimioterapia, pouco eficaz, era usada para tratar tumores em estado mais avançado quando do diagnóstico. Data também destas neo-priscas eras a presença insólita de um clínico na sala de cirurgia:
"O” cardiologista!
Pongados na carona dada pelo destaque televisivo que os anos 70 deram aos avanços na cirurgia cardiológica, estes aliens pululavam pelos centros cirúrgicos com seus monitores cardioscópicos e suas mesinhas
forradas de compressas onde repousavam seringas com medicações de cujos segredos se sentiam guardiães. Chegavam tarde (após o início da cirurgia) e saíam antes de acabar não sem antes darem um pulinho no quarto do paciente para avisarem à família que apesar de “alguns probleminhas” tudo correra bem graças ao uso do seu infalível monitor e das suas seringas milagrosas; ah, e antes que eu me esqueça, aqui está a fatura dos meus honorários, certamente modestos, em função da importância da minha tarefa desempenhada! A regra de chegar depois do início e sair antes do fim era quebrada apenas e tão somente nas circunstâncias em que o paciente envolvido era, digamos assim, RICO!
Nestas ocasiões, chegavam antes mesmo da transferência ao centro cirúrgico, beijavam a família, toda faziam cara de freira e se despediam dizendo: “farei tudo que estiver ao meu alcance para que vocês tenham o querido – nome ou apelido familiar do paciente – de volta! Fechavam a porta e iam para o centro cirúrgico com seu monitorzinho debaixo do braço, imaginando a conta que deixariam após aquela breve manhã de trabalho.
Remanescentes desta época de pouca tecnologia e muita embromação ainda são vistos vez por outra, estetoscópios no pescoço, “acompanhando” reais ou supostos abastados pacientes. Já chegam se justificando: “Bem pessoal, eu só estou aqui porque o paciente não admitiria que fosse de outra maneira...” e, bem mais sinceros que antigamente, vão finalizando: “...assim que ele dormir eu deixo vocês em paz!” Realmente, cumprem o prometido e se vão para só retornar no pós-operatório quando se postarão impávidos frente ao paciente operado esperando que o remorso desencadeie a gratidão transmutada em presentes, honorários ou outra moeda aceita.
Compõem esta turma, canastrões queridos (realmente queridos) e outros nem tanto. Durante um encontro recente com um membro do segundo grupo, num vestiário de centro cirúrgico, me ocorreu de pregar-lhe uma peça: troquei-me rápido e com a equipe já preparada para iniciar a cirurgia, aguardando só o beija-mão do “clínico” em questão, administrei uma dose amnesiante de uma medicação obrigatória na indução anestésica. A medicação fez efeito antes da chegada em sala do embaixador clínico das cordialidades interesseiras. Ele chegou cumprimentou todos, auscultou o paciente (!), esperou a indução anestésica e se foi numa nuvem de poeira!
Pouco tempo depois encontrei-o na cafeteria do hospital extremamente indignado:
- Veja só, aquele fdp para quem tive o cuidado de fazer mesuras interrompendo minha manhã de trabalho, disse que não se lembra de ter me visto na sala de cirurgia naquele dia, quanta ingratidão!
Praguejou mais um pouco e, como de costume, partiu numa nuvem de poeira...
Por incrível que pareça, o episódio se repetiu mais uma vez e com a mesma formatação, um mês depois só que desta vez, o nosso amigo mostrou-se interessado em saber de mim se eu teria alguma explicação para esta amnésia que ameaçava tornar-se epidêmica. Sem que resposta melhor me ocorresse, botei a culpa nos anestésicos inalatórios usados após o início da anestesia na esperança de finalizar a aborrecida conversa!
Ele lamentou o apagamento de memórias tão importantes e... partiu numa nuvem de poeira!
Passadas algumas semaninhas, eis que me encontro em uma tarde de consultas pré-anestésicas quando um deputado influente do partido governista ligado à oligarquia local se apresenta para consultar-se visando uma cirurgia de retirada da próstata. Mostrou-se cordial e cooperativo respondendo pronta e gentilmente a todas as questões apresentadas; antes de encerrarmos a entrevista ele me revelou que era paciente do cardiologista Dr. Jajá Pastapura (sim, o mesmo de antes!) e me saiu com esta:
Sabe Dr., o Dr. Pastapura dissse-me que eu estou bem mas que por via das dúvidas ele acompanhará a minha indução anestésica para certificar-se de que não serão utilizados anestésicos inalatórios que possam ser prejudiciais à minha saúde!
Pensei comigo: Jajá não tem jeito!
No dia da cirurgia do deputado, lá estava Jajá.
Só faltou entrar de terno no centro cirúrgico!
Da minha parte, repeti o script: corri antes dele e fiz a medicação amnesiante.
Jajá chegou, beijou o deputado, contou umas piadas, elogiou o governo e me deixou realizar a anestesia que para seu (injustificado) regozijo, seria uma raquianestesia: ou seja, nada de anestésicos inalatórios!
Como planejado, o deputado não se lembrou de Jajá que por sua vez soube andar indignado a minha procura para discutirmos mais aprofundadamente "outras causa possíveis" de amnésia no pré-operatório imediato!

P.S. A croniqueta acima tem caráter totalmente ficcional. qualquer semelhança com pessoas ou instituições vivas ou mortas terá sido mera e involuntária coincidência!

3 comentários:

Alexandre disse...

Caro Manellis,

Realmente é ficcional, pois imaginar que existe sujeito com esse seu personagem Dr. Jajá, é, no mínimo ilário!
Seria muita cara-de-pau existir um sujeito como esse!!!!!!!!!!!!!!!!

Um abraço.

Luis Cláudio Correia disse...

Manellis,

ao revisar algumas postagens de seu Blog, tive a surpresa dessa crônica que por mera coincidência reflete perfeitamente os fatos. Sua solução para a questão foi perfeita, pena que não é sempre você que anestesia os pacientes de Jajá.

Antonio Raimundo disse...

Morpheus

Conheço vários Jajás, vcs anestesistas mais jovens, eliminaram a prática "da monitorização"que era no passado muito rentável. O beija-mão ficou muito mais barato, rsrsrs. Agora com a técnica da amnésia pré anestesica, a vítima não vai paga a conta já q o Dr Jajá
nõ esteve no "último minuto"antes do grande evento.
Toni

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