SEU NI, PÁSSARO NEGRO VOANDO NA NOITE ESCURA
"Blackbird singing in the dead of night
Take these broken wings and learn to fly
All your life"
Ouvindo uma versão country de "blackbird", deixei o pensamento planar e me veio a lembrança de um sujeito que conheci apenas por uma oportunidade, e depois não mais ouvi falar. E se hoje o reencontrasse, talvez nem o reconhecesse, dado o tempo fugido desse nosso encontro. Lembro apenas de um senhor magro, cheio de serenidade atrás do pequeno olhar azeviche e de poucas palavras, e que arrastava chinelo no caminhar. O nome: Seu Ni.
Sua relação com essa música tipicamente beatleniana em aparência é nenhuma, mas rememorando os acontecimentos, firmamento de minhas paragens, e a vibração dos solos de violão, facilmente encontrei uma ligação muito própria entre eles. Cheguei até a desconfiar que ela havia sido feita não em Liverpool, mas em Rio de Contas.
Ora, se um mineiro compôs uma música "Para Lennon e McCartney", por que estes não poderiam ter feito essa outra para um baiano?
Aconteceu durante nossa viagem para lá. O contratamos (falo em plural porque éramos três casais na época dos fatos) como guia, ele e sua caravan anos setenta movida a gás de cozinha. Era pra ser por um único dia, mas acabou que eles (Seu Ni e a caravan) nos acompanharam durante toda nossa permanência lá.
De início, nos causou bastante estranheza sua forma de falar, quer dizer, de não-falar, pois era conciso nas respostas, direto e monossilábico todo o tempo. Muito diferente do que estávamos acostumados a encontrar num guia turístico. Ele não sabia nomes próprios, nem estórias falaciosas sobre o lugar e não dissimulava saber. Via-se claramente que conhecia muito bem toda região, e que era o conhecimento de alguém nativo e crescido no lugar. E, sem nada florear, dizia-nos os nomes da mesma forma como devia ter aprendido quando criança e que ainda utilizava.
De um jeito muito simples fomos apresentados ao "Morro-do-fotógrafo" (tinha uma formação rochosa que fazia lembrar um homem segurando a máquina fotográfica), ao "Morro-do-paredão" (chamado assim por conta da enorme parede de pedra que havia em uma das laterais),
ao "Morro-da-visão" (este possuia uma bela vista), a "pedra-leite" (muito alva), a "folha-veludo" (repleta de pequenos pêlos), a "Rua-da-casa-rosa", a "Igreja-de-pedra", a "Serra-do-cafezal", a "Vila-dos-portugueses"... Não tardou e logo nos acostumamos com aquele seu jeito de falar e passamos até a nos divertir inventando nossas próprias denominações daquela mesma maneira.
Em contrapartida, sua satisfação, sua disponibilidade e sua atenção em nos acompanhar, e a forma cautelosa com que nos conduzia naquelas trilhas acidentadas, era absurdamente carinhosa, apontando qualquer obstáculo no caminho ou se antecipando ligeiro em nos resguardar frente a qualquer mínima possibilidade de acidente.
Estava claro que não era, nem nunca havia sido um guia turístico. Entendemos que deveria estar ali por necessidade, safando o desemprego ou a aposentadoria pífia. E aquele seu trejeito matuto e sem-jeito não nos incomodou.
As vezes, ele nos parecia aquele tio antigo que dificilmente encontramos, mas, mesmo assim, nos sentimos próximos e não sabemos exatamente o porquê.
Acabou que no final já não imaginávamos nossa viagem sem ele. E até nos mostrou a sua casa, seus filhos e netos, e as mandalas que pintava sobre pratos de porcelana e vendia na cidade. Claro que compramos!
Belos foram aqueles dias!
Na noite em que fomos embora, fez questão de nos levar para rodoviária. Foi mudo todo o caminho. Para quebrar um pouco o clima de despedida, a caravan nos deu um agudo susto e apagou na estrada. Mas, logo Seu Ni buliu nuns fios dentro do capô, dizendo "Ah, eu já sei o que é que é!" e ela, meio rouca, voltou a queimar gás.
Enfim, chegamos.
Antes da partida, que aconteceria num crepúsculo laranja, repleto de pássaros-pretos (voavam e cantavam frivolamente), fizemos uma rápida reunião e decidimos dar a ele uma gratificação em dinheiro. Apenas uma forma a mais de agradecer todo seu enternecido apadrinhamento conosco.
Procedemos a entrega da quantia e nos despedimos externando gratidão.
Ele, abruptamente, como se houvéssemos puxado um gatilho, numa erupção, começou a chorar. E chorou num desconsolo que só se vendo para medir.
Ficamos atônitos! Desguarnecidos que estávamos, fomos impiedosamente demolidos no contra-pé. Nós..., cautos urbanos, tão acostumados a "toma-lá-dá-cá(s)", a idas e vindas apenas, como imaginaríamos tal reação? Calados e perplexos, apenas trocamos olhares, única reação que nos coube.
Semi-refeito, ele enxugou os olhos e, mesmo sabendo do improvável, exprimiu num semitom soluçoso: "Não contem isso pra ninguém, hein..."!
Embarcamos.
Continuamos calados toda a viagem de volta. Ainda não haviam inventado uma palavra que pudesse traduzir o que sentíamos naquele momento. Uma palavra que fosse usada unicamente quando todas as palavras são sufocadas por um sentimento. Inefável..., apenas se aproxima!
Jamais o esqueceremos! Era de uma pureza inestimável, uma água doce nascitura.
Ele continuou lá, manso..., eterno..., olhando os pássaros.
Partimos.
Posteriormente, o indicamos como guia a outros amigod que para lá viajaram e todos foram categóricos em afirmar não o encontrar, nem alguém que dele soubesse. Uns chegaram até a desconfiar da sua lúdica existência.
Eu particularmente acho que ele desistiu. Ficou naquele instante, dentro da noite, um pássaro negro voando na noite escura.
"All your life"
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