Crônica de Alexandre Figueiredo
Como ofensa não tem prazo para ser reconhecida, agora me sinto realmente ofendido. E não sei explicar porque esperei tanto tempo para me sentir assim, acho porque apenas por agora me atentei para a sua gravidade. Pura distração. É que comi moela por esses dias num botequim de esquina e, então, me veio todo o acontecido na memória. Estou realmente ofendido agora!
Na minha casa a simplicidade sempre preponderou em todos os aspectos, e na cozinha não poderia ser diferente. Minha mãe, que sempre esbanjou dotes culinários, era contumaz em transformar pratos simples em receitas clássicas, recheadas de elementos distintos. Sabia muito bem como extrair a essência de cada alimento e combinar seus sabores. Quituteira de mão cheia. Ainda sabe até hoje! Se fosse escritora, e fizesse com a pena o que faz com as frigideiras, faltariam-lhe linhas para juntar as brochuras.
E dessas inúmeras transformações que promovia, uma era ainda mais especial para nós, talvez porque fosse preparada com freqüência em ocasiões festivas (como falei, sempre tivemos uma vida simples) - ensopado de moela de frango.
É sempre com uma boa lembrança que vejo esse prato, afinal sempre esteve associado a alguma comemoração, às vezes até inventávamos um motivo novo apenas para comermos aquela carninha emborrachada mais uma vez.
Seu preparo era um verdadeiro rito.
Minha mãe tinha o lugar certo para comprá-las, dizia só servir as que eram vendidas num tal abatedouro, que apenas ela sabia aonde era. Ela mesma tinha de comprar pessoalmente. Às vezes, eu desconfiava que ela criava umas galinhas escondidas apenas para retirar-lhes as moelas fresquinhas.
Depois, já em sua cozinha, tinha uma forma própria para limpar uma a uma com uma faquinha de cabo branco; lavar; temperar (acho que nessa etapa é que fazia seu diferencial); deixar no tempero pelo tempo exato; e cozinhar, também tinha a intensidade certa do fogo. E não podia cozinhar de mais, nem de menos, tinha o ponto certo, como uma massa "al dente", consistente e saborosa.
Salivo só de pensar naqueles cubos acastanhados, brilhantes e fumegantes, borbulhando na panela. Maravilha!
E é claro que essa preferência não ficou restrita à nossa casa, logo os amigos mais chegados se renderam ao seu fascínio e também se fartavam quando lá nos reuníamos. Era um evento aguardado e veementemente cobrado - "Quando vai ser a próxima moela"? E minha mãe adorava. Quer vê-la feliz empazine-se com sua comida. E quando via a panela tendo seu fundo raspado, chega seus olhinhos cintilavam. Foi assim após o baile da minha formatura, não sobrou nem o caldo.
Certa vez, acho que a última (pura conscidência) em que festejamos com uma moelada, convidei um colega de trabalho para participar. Era aniversárioa meu e isso já faz alguns anos. E na hora em que foi servida, chamei-o para compartilhar conosco a idolatrada iguaria. Ainda perguntei se preferia com farinha ou com fatias de pão, ele questionou-me sobre o que era, acho que para confirmar,e , assim que ouviu a resposta, retrucou em bom português: "MIÚDO DE FRANGO!!! TÔ FORA"!
Sinceramente, na hora, eu não dei importância àquelas palavras. Não lhe disse nada e continuei na comemoração, afinal a festa era minha, lamentei apenas que não tivesse disposto a saboreá-las ou não gostasse.
Agora, depois de tanto tempo, me veio a lembrança desse episódio.
Sinto-me ofendido. Como ele pôde chamar as moelas de minha mãe de miúdo de frango? Enorme ultraje! O que havia saído da nossa cozinha nunca poderia ser denominado, desclassificado de tal forma. Aquilo era arte, arte culinária da mais pura. Precioso. E para mim mais valioso que qualquer foie gras (que também é viscera de ave!). O requinte estava na forma como cada um conseguia enxergá-lo. Se ele não conseguiu, que pena... E se não era receita sofisticada ou internacional, era comida brasileira, bem baiana, como nós.
Aquelas palavras eram como um tiro em nossa história, um atentado à nossa cultura caseira, uma indelicadeza, um desprezo. Como pôde falar com tanto desdém? "Miúdo de frango..."
Tenho certeza que se eu o tivesse oferecido como gésier de poulet (assim mesmo em francês) ele teria adorado. Esnobe de uma figa!
Que vá se fartar de cuisine nouvelle em outro canto, mas que respeite as moelas de minha mãe, elas definitivamente não são miúdos de frango!
3 comentários:
Sou um fiel e ardoroso fã de moela(minha mãe tambem é craque!) e suas palavras foram acertadas.
Parabens!
PS. Miúdo é a cabeça de seu colega.
Grande abraço
Jonga
Xandinho...
Contou o milare, agora conte o santo!!!!!!!!
Quem é o "miolo miúdo"?
Gustavo
Vieira,
Assim como você, aprecio bastante ensopado de moela de frango, apesar de não degustar já faz algum tempo. Me faz voltar ao túnel do tempo - lembranças de minha infância, adolecência, do tempo em que morava no interior, e, principalmente do meu pai.
Enfim, adoráveis recordações.
Infeliz comentário do seu colega. Esnobe e deselegante.
Bjs.
Tia Bel.
Postar um comentário