Não sem uma certa surpresa, li ontem no espaço aberto - Tendências e debates (pág 03 do 1º caderno da Folha de São Paulo) - um texto de Luciano Huck no qual ele tece considerações em torno de um episódio de violência urbana do qual foi vítima assim como outros familiares. Perdeu um relógio e ficou chateado (aliás, como eu também ficaria!). Declara seu amor à cidade de São Paulo, tece considerações genéricas sobre o quadro atual, cita sua ONG e finaliza, ou por prudência ou por falta de espaço; não sei.
Fico imaginando qual a continuação, na cabeça de seus autores, destes textos nos quais a raiva, a indignação, a frustração e a necessidade de correção e polidez do texto são batidos no liquidificador de algum processador de texto.
A banalização da desgraça alheia já está devidamente instalada no país e diante a mais uma notícia desagradável nos noticiários, damos de ombros e retomamos a rotina como faz um oncologista que acaba de dar um diagnóstico de câncer terminal em um paciente (lá ele!!!) ou mesmo como o gnu (aquele bovídeo asinino que estrela os documentários no papel de vítima dos leões) que indiferente ao ataque feito ao vizinho de relva, dá um piquezinho para sair do quadro dos cinegrafistas e vai seguindo adiante.
Por incrível que pareça, comprovadamente do ponto de vista biológico, zebras e gnus não sofrem de estresse antecipado na presença de predadores ou seja, não futurizam o risco próprio. Estressam-se apenas quando, por mecanismos evolutivos, reconhecem sinais inequívocos de um ataque direcionado contra si. A natureza assim os preparou ao longo de milhares de anos para que não gastassem energia inutilmente nem se estressassem contra a violência inevitável.
Acho que nossa sociedade está passando por um processo acelerado de "gnusização"
Como gnus alfabetizados, os famosos começam a ser mordidos pela violência urbana cada vez mais randômica e intensa; quando escapam com vida encaminham seus textos para o fórum mais próximo para serem apreciados pela indiferença dos leitores.
Na base de tudo está o mal-estar orgânico que dorme e acorda com os brasileiros mais pobres: a fome, o cansaço, a falta de sono restaurador, as verminoses e os intestinos cheios de alimento de má qualidade funcionando como uma espécie de veneno constitucional; a falta de futurização - estas pessoas não se enxergam no futuro, qualquer que possa ser ele - os atordoa. Revogar a passagem do tempo torna-se uma empresa mandatória. Num fluxo natural, eles se entregam à anestesia do vídeo, das drogas ilícitas, do álcool (propagandeado ad nauseam na TV) ou do sexo sem planejamento como atesta as legiões de adolescentes grávidas.
Para infelicidade dos nossos pobres, só a aquisição dos últimos graus do conhecimento filosófico em associação com o bem estar físico que só a saúde plena pode oferecer é capaz de sedar o turbilhão aleatório que emerge do orgânico para originar nosso ilusório livre-arbítrio e botar ordem na casa das idéias habilitando-nos a viver felizes nos braços da frugalidade.
(parágrafo acima em homenagem a Saramago!)
Sem isto, sobra apenas a paliação oferecida pelo templo da esquina ou no bar do beco.
Aliás, sempre achei que dentro do seu copo, todo bêbado carrega uma espécie de bíblia líquida!
Enquanto "O país do futuro" desfaz-se de seu sobrenome (do futuro), deixa também de ser "o país".
E aí sobra o quê?
Se você não sabe responder, talvez esteja como eu:
Sofrendo lapsos de futurização.
Estamos virando gnus!
P.S. Se o texto pareceu um pouco hermético, leia "Em busca de Espinosa" escrito pelo famoso neurocientista português (não, não é piada!), Antônio Damásio. O portuga aí é tudo de bom! Um dos popstars da nova neurociência cognitiva com todo o mérito.
Tão revolucionárias para sua época eram as idéias do filósofo judeu holandês Baruch Espinosa (1632 - 77) que ele foi excomungado e teve suas obras proibidas por décadas. Hoje, é reconhecido como um dos pilares do pensamento ocidental. O neurologista António Damásio, leitor de Espinosa na juventude, descobriu que as idéias desse pensador sobre um dos grandes temas da filosofia e da ciência - a questão da unidade entre mente e corpo - eram muito próximas daquelas da mais avançada da neurociência. Damásio constatou, surpreso e fascinado, que Espinosa já intuíra que mente e corpo eram manifestações de uma mesma substância e que os sentimentos constituíam o alicerce da mente. "Em Busca de Espinosa" completa a trilogia de Damásio sobre o papel da emoção e dos sentimentos nas relações entre a mente e o corpo: os outros livros são "O Erro de Descartes" e "O Mistério da Consciência". O autor mostra como emoções e sentimentos fazem parte do processo regulador da vida e são essenciais não só para a sobrevivência física individual, mas também para o êxito da espécie humana.
Nenhum comentário:
Postar um comentário