O mar era um interminável espelho. As constelações se exibiam nuas, vaidosas. A lua, nova naquele quarto de mês, tornava-as ainda mais reluzentes sobre o mais puro negro. O céu estava em festa, chuviscado de estrelas (e pareciam ter vida própria). Elas eram o próprio firmamento. Um firmamento de estrelas! Exibiam cores cintilantes, quentes, em tons variáveis e discretos como um mosaico. Piscavam em ritmos próprios, algumas tão próximas entre si que pareciam caber num só punhado de mão. Por hora, uma ou outra lançava-se ao mar, deixando apenas um rastro luminoso em seu caminho. Nunca se vira noite tão viva, uma expressão própria da natureza. Não havia nuvens, todas dispensadas. E o vento corria afável em forma de brisa por entre os panos.
Hélio permanecia deitado sobre o convés, era um espectador certo de que também estava sendo observado. Tinha uma sensação inexata de prazer, tentando inútil identificar as constelações que outrora vira em outros céus. Fazia planos para contá-las e recontá-las infinitas vezes, também inútil. Imaginava formas, as mais descabidas possíveis, inusitadas, e elas, as estrelas, multiplicavam-se a cada piscar de olhos. Eram vibrantes, ardilosas. Flutuavam no céu e também no mar. Os peixes pareciam nadar por entre elas e elas pareciam brotar do negrume do oceano paralizado. O céu parecia ter dominado o mar e o mar se misturava ao céu e tudo parecia ser uma coisa só.
As pequenas luzes eram infinitas e moviam-se como uma interminável flotilha. Era um descabido universo sem horizonte. Podia-se virar de cabeça-pra-baixo e nada mudaria. O barco deslizava como se gravitasse numa atmosfera própria, fantástica, ilusória. Singrava o céu. Hélio era um astronauta no mar, numa festa, silenciosa e solitária, a mais fabulosa em que estivera. Uma festa-surpresa.
Ouvia o suspiro do vento que deitava sobre o água cintilante e tornava tudo ainda mais inexpressivo. As velas se enchiam lentas como imensos balões brancos, inflados sobre a sombra da noite. Os cabos não tilintavam, as ferragens não trincavam, a bússula não se movia, todos cúmplices da algazarra, da viagem sideral.
Desejava que as horas parassem, que tudo perdesse a dimensão na fronteira lúdica do abstrato. Aquilo só seria concebido no mais profundo sonho, mas acontecia como uma mágica diante dos seus olhos. A imaginação... Imaginava-se Ícaro no seu vôo exuberante em busca do céu infinito, voando cada vez mais alto, além das nuvens, do espaço, das asas de cera. Aquela noite era apenas das estrelas de menor grandeza.
Hélio continuava sua viagem ilusória, degustando o tempo como uma rara especiaria. Esgotara-se o cansaço, a solidão, a excitação da chegada. Suas cadeias já não tinham portas. Seus bens já não tinham matéria. Apenas um homem no meio do mar.
Seu corpo permanecia inerte (sem qualquer intenção) sobre o convés, a cabeça sobre um cabo torcido em lais-de-guia. Olhava para o nada, para o tudo. Era o prórpio nada e o próprio tudo. Pensava em como poderia estar sozinho diante de tudo aquilo. Ultrapassava uma existência. Inefável. Desejava ser criança novamente, mergulhava no tempo, numa fugaz e nova infância. Saboreava o insubstancial valor daqueles minutos. Não desejava nada.
E apenas esperou.
De sotavento, tão logo surgiram os primeiros sinais do dia. E o amanhecer delimitava o céu e o mar num horizonte até então plano. Gaivotas quebraram o silêncio. Hélio apenas sorria.
Um comentário:
Vieira,
A natureza sempre foi minha fonte de inspiração - lua, mar, estrelas...
Hoje tenho o prazer de acordar e ver o mar - graças a Deus.
Gostei da indicação da leitura.
Bjs.
Tia Bel.
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