A ESCOLHA
Conto de Alexandre Figueiredo
Era tarde, tardezinha. O vento molhado, incessante, atravessava sem cortesia o interior da enorme tenda. Fazia vibrarem os pingos de chuva que o acompanhavam. Parecia vir de todas as direções. Era agressivo o bater deformado das lonas. E naquela brava agressividade, esticava as cordas de amarração, revirava os trapézios pendurados no alto, varria as pipocas-caídas do chão... Aquele ar era-lhe diferente, e algo soava lânguido, estranho, desconhecido.
A música alegre marcava a cadência penosa dos seus movimentos. As dores teimavam em piorar nos dias frios, e era impossível não senti-las. O peito lancinava incessante, indiferente, como se ali, ainda estivesse. Os nervos rasgavam-lhe as pernas, o dorso repuxava. Ardia surdo o oco dos seus ossos.
Sentia frio, mesmo na mira dos holofotes, mesmo com a dupla camisa colada ao corpo e meiões até os joelhos. Mesmo transpirando, cambalhoteando, piruetando, cabriolando..., sem parar.
Sob a peruca, o suor escorria. A maquiagem grossa falseava o perene sorriso na aparência pueril, cobrira a face de pó-de-arroz, tinta guache e brilhantina. Seus típicos sapatos, alongados nas pontas, não disfarçava as marcas da lomga idade. Nos anéis carregava velhos companheiros: o elefante Joca; o furão Maicon; a girafa Giralda; a cobra Peçonhenta; e, no dedo mindinho, o sagüi Nico.
Os tons coloridos em listras e os enormes babados ajudavam a esconder a deformidade do peito amputado, a lividez de sua pele, e a magreza ossuda de suas costelas.
Ainda por trás do rubro nariz postiço, sentia o odor nauseante da roupa mal-secada do dia anterior, aquele lugar era orvalhado demais.
Muitos se perguntavam como ainda poderia estar ali, contrariando todas as lógicas, sabendo ser fácil lhe faltar vitalidade - ossos carcomidos, músculos com desnutrição... Era absoluta sua magreza. Nem por isso encurtou sua apresentação, como seria simples imaginar. Representava inabalável.
Da marcha imperfeita encenava trejeitos do cangurú-manco, da coluna não-ereta surgia o chimpanzé-com-dor-de-barriga. O leão-depois-da-gripe aparecia na tosse persistente de friagem (virava sua peruca laranja de forma que ficasse parecendo uma juba). Contudo, quando se equilibrava no monociclo é que mais sofria daquela crescente incapacidade física, era cruciante.
Mas, estava no picadeiro, e, assim, só assim, driblava o implacável tempo futuro, que se movia célere, e apenas era futuro por ainda não ter acontecido. Apenas sabia ser palhaço, o que fazia desde os dez anos, como seu pai a ensinou. E pior tudo seria se não mais se apresentasse.
Havia feito sua escolha e teria de aceitar aquela doença faminta lhe sugando sem compaixão. A única e última chance havia perdido, quando optou pelo filho ainda em sua barriga de três meses. Não poderia admitir perdê-lo em face da quimioterapia, mesmo sendo uma desventurada peregrina, mesmo com seu mundo girando ao contrário, mesmo sem saber o paradeiro do pai da criança, um mágico circense que havia usado seus truques pra desaparecer da face da terra.
Era mãe. E não tinha alegria maior que vê o pequeno na arquibancada, já sorrindo de suas palhaçadas.
A platéia estava cheia e os sorrisos-gargalhadas driblavam os vazios-das-bocas-banguelas-dos-dentes-de-leite, os sorvetes, os algodões-doces, as jujubas, os sacos de pipocas... Sua voz, propositalmente anasalada, arrancava-os, com hilariantes lorotas e fábulas de criança.
Seu número iria findar, mas o grande espetáculo apenas começava, como haveria de ser. Depois, ainda os malabaristas, os domadores-de-leões, os motoqueiros-do-globo-da-morte, os trapezistas, os pôneis adestrados...
Estava muito fria aquela noite, mas nada lhe importava mais.
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