março 29, 2007

Ó paí, ó

Raimundo é um nome muito comum na Bahia ou melhor, na cidade da Bahia, como Salvador já foi conhecida num passado não muito distante. Raimundo é também o nome do meu peixeiro (mon poissonnier); um tipo idiossincrásico que adoro encontrar e de cuja conversa vou ter que me abster enquanto durar o período de proibição do consumo de peixes pescados na Baía de Todos os Santos, interditada que foi por mais um crime ambiental: 50 toneladas (estimadas) de peixes e mariscos envenenados por uma fonte até então não identificada.

.
Terei que me manter, por algum tempo, longe dos meus robalinhos, olhetes e beijupirás que tanto amo e que fazem a alegria dos meus repastos chez moi!
Se a saudade apertar, aparecerei apenas para bater papo e observar o desfile dos tipos locais a partir da porta da peixaria tendo como fundo o forte de Santa Maria e as cintilantes águas da Baía.
Toda esta desgraça às vesperas da semana santa!
Estaremos a mercê do salmão chileno laranja fluorescente, do caríssimo bacalhau e do infame peixe congelado que posa melhor como fóssil glacial do que como respasto decente!
Vamos então aos tipos que laboram neste point de tipicidades e os quais me propus descrever-lhes quando assentei o tema do post na cabeça: Raimundo, que odeia peixe e prefere comidas à base de carne de boi, é de pouca conversa e só oferece intimidades tertuliantes a fregueses de longa data (de preferência após o milésimo robalo!) que não sejam pechincheiros e que não questionem a qualidade do peixe que lhes for oferecido; não estranhe sua aparentemente misoginia, ele é casado e pai de vários filhos que compartilham entre si apenas a herança genética paterna mas não gosta de negociar com mulheres. Por isso, nem mesmo em sonho, pense em mandar sua esposa por lá; se ela pechinchar ou pedir para ver a peixaria inteira, ou pior, para comprar só a metade de um peixe ou 250gr de camarão, seus telefonemas serão ignorados pelo resto do semestre.
Mundinho é assistido no seu negócio por dois tipos não menos interessantes: Jorginho e Antônio. O primeiro é um afrodescendente, representante fenotípico completo e acabado do que os antropólogos chamam de Homo lassidus (linhagem de hominídeos com enzimas ultra-lentas e movimentos quase imperceptíveis na maioria do tempo em que é observado); Jorginho guarda toda sua explosão muscular para o momento de fechamento da peixaria quando, em questão de segundos, se move como um raio abaixando a porta do estabelecimento e saindo pela porta lateral para então se postar em mais um período de imobilidade de duração indefinida no bar que funciona ao lado da peixaria. Portador de uma cinética parética, Jorginho está sempre à bordo de um par de tênis impecavelmente brancos e meias idem. Subindo as vistas pelas pernas zambetas e desprovidas de pêlos, luzidias como que lustradas com azeite chegamos a um indefectível short adidas azul que poderia sugerir a um observador desatento, tratar-se de um atleta das para-olimpíadas prestes a ganhar a medalha de ouro na competição de imobilidade sincronizada modalidade solo. Uma corrente de prata com uma cruz de caravaca cuidadosamente polida com Kaol, presente de uma holandesa encantada com seu charme paradão, completa o visual por vezes auxiliado por um óculos-de-sol, um pouco desproporcional, oferecido por uma outra admiradora européia preocupada com o fato dele piscar muito pouco. A barriguinha proeminente, que orna seu corpo magro com uma simetria elipsóide, tem ao centro um umbigo protruso que ele encosta no balcão da peixaria, como quem tenta ligar um aparelho, sempre que está diante de uma eventual e incontornável necessidade de realmente ter que despachar um freguês.
Este trio, do qual vou passar algum tempo longe, é completado por Antônio: o mais exímio filetador de peixe das redondezas! Um fenômeno a ser investigado pela odontologia, Antônio é um outro afrodescendente que se move e trabalha por si e por Jorginho. Aparenta ter mais de 62 dentes, todos alvíssimos e aparentemente iluminados com faróis de milha a partir de dentro da boca. Foi Antônio, por exemplo, quem me ensinou que o camarão realmente fresco será sempre vendido com casca e mesmo que o sacudamos pelo rabo sua cabeça não se soltará! Quando o camarão não puder tolerar este teste, será vendido sem cabeça: uma pechincha para os desavisados. Quando o camarão estiver prestes a perder sua validade alimentar, sanitária e biológica, será descascado e vendido aos retardatários como filé de camarão!
Que truque hein?
Desde então vou à peixaria munido de um barbante que amarro à cauda do camarão para a seguir fazê-lo rodar em velocidade sem que solte a cabeça! Se o bicho passar no teste, considero o lote como ajuizado (afinal de contas não perdem a cabeça facilmente!) e passo para etapa final de pesagem da quantidade desejada e pagamento sob os olhos atentos de Jorginho.
Antônio é uma figuraça gentil a qual me fará falta encontrar para pedir que corte o meu peixe assim ou assado.
Tudo isso por causa de um acidente, que como todos do gênero, não goza de justificativa aceitável e que vai me deixar sem peixe e a muitos outros baianos do entorno do recôncavo, sem comida de qualquer tipo à mesa.
Tudo isso bem no dia do aniversário de Salvador cujas águas da baía foram singradas en premiére em 1º de novembro: Dia de todos os Santos!
Tudo isto no dia do nascimento de Rafael, netinho do querido Do Valle
Tudo isso no dia em que Braguinha faria 100 anos.
Tudo dia no entorno do lançamento de Ó paí ó, uma verdadeira ode à baianidade feliz (corruptela de "olhe para isto aí, olhe", "ó paí, ó" exprime espanto indignação, sentimento de repulsa civilizada, desaprovação e implicitamente declara seu enunciador como inocente da merda que ele acaba de denunciar - quase um ideograma!).
Tudo isto no entorno do aniversário da União Européia, reduto do último grande momento da raça humana propriamente dita: O Iluminismo
Tudo isto no entorno do anúncio de um bem vindo plano para melhora da educação básica que deixa uma pergunta paradoxal no ar: quando educaremos nossa elite?
Tudo isto por que eu tinha um montão de coisas prá contar mas esta estória foi crescendo como um alien dentro da minha frágil cabeça e aí...
Palavra é bicho vivo!
Como escreveu Sueli Costa, "...só uma coisa me entristece..."
Como dissera, da porta da peixaria eu vejo a calçada, a rua, a praia e o mar, uma visão de arrombar retinas (baixou Chico!). No entanto, qualquer compra que dure mais de 30 minutos me brinda também com a infeliz visão de homens fenotipicamente estrangeiros acompanhados de meninas fenotipicamente abaixo da maioridade aparentando explicitamente um relacionamento que me abstenho de declinar ( vá ser lacônico assim na p* que o pariu!).
Nada mal quando temos uma ministra do turismo que também é sexóloga.
Volto já!

Um comentário:

Coluna de Trajano disse...

Pois foi nesse cenário mesmo em que vi o seguinte acontecido: Papo dos pescadores, pinga como combustível e eis que a virilidade de um foi posta a prova.
A resposta foi rápida: o artista bateu no muque esquerdo e disparou
- Aqui é HGE
Bateu no muque direito e emendou
- Aqui é Nina Rodrigues
Arrematou pegando nas vísceras luxuriosas
- Aqui é Tsyla Balbino
Duvidar, há quem?

Related Posts with Thumbnails