Crônica de Alexandre Figueiredo
Ela já existia desde antes da época em que passei a entender as coisas do mundo. Era feia, enorme, íngreme..., eternamente encoberta por mato e entulhos. Apesar de estar sempre ali, apenas lembrei-me dela agora, depois de receber a notícia que incendiou novamente. E, juntamente com essa sua lembrança, vieram inúmeras outras recordações da minha infância.
Por muitas vezes, agora lembro, eu ficava observando-a pela janela do nosso apartamento de sétimo andar. Dormia e acordava olhando para ela. Perdia horas vendo o balançar lento e pesado do bambuzal que habitava sua porção mais baixa. Do alto eu via o vento. Via o vento passando ligeiro e ressoando nas folhas de mato alto, como num mar de céleres ondas verdes. O mesmo vento que conduzia os aviões de papel que arremessávamos (eu e meu irmão) lá de cima e que nela viam seu único pouso.
Era um lugar peculiar, eterno, estio. Longe de ser uma área verde, um jardim, não possuía árvores frutíferas, pássaros, flores... Nada. Nascera do nada e não servia para absolutamente nada. Era um nada. Nem ninguém nunca empreendeu esforços para mudá-la de condição.
Depois de certo tempo pararam de jogar entulhos nela, porque, acredito eu, perceberam que seu tamanho estava cada vez maior. Foi aí que sua vegetação cresceu e se transformou numa enorme diversidade de matos e ervas-daninhas - nunca vi em concentração parecida, nem com a mesma exuberância. Ali deviam existir os elementos perfeitos para o crescimento desses tipos de plantas. As únicas exceções eram os pés de mamonas (e os pesados bambus), que teimavam em permanecer vistosos os anos inteirinhos, certamente também se beneficiavam daquele tipo de substrato.
Como não poderia deixar de ser, a ribanceira tinha sua fauna própria, única, também de bichos imprestáveis - depois classifiquei de fauna típica urbana - gatos vira-latas, calungas e calangos. E também uma infinidade de enormes baratas, as mais mal-encaradas que já encontrei. Diziam, ainda, que lá viviam enormes ratazanas, cobras peçonhentas e até sariguês raivosos, os quais nunca cheguei a ver.
A ribanceira era um só malogro, e, apesar de reunir tantas coisas consideradas indesejáveis, nunca chegou a representar uma ameaça real à criançada do condomínio. Muito pelo contrário, ela sempre estava por perto, quieta, e participava de inúmeras de nossas brincadeiras e também marcava sua presença em histo´rias que ali cresceram no mesmo tempo que eu. Nela, ainda, recolhíamos a munição para nossas guerras-de-mamonas e capturávamos as maiores e mais ferozes formigas para rinha. Lá, em suas redondezas, também ficavam os melhores esconderijos quando necessitávamos fugir de algum adulto enfurecido.
Ribanceira era quase um nome próprio, uma personagem real em nossas histórias. E cada um que ia crescendo, ia também criando seu vínculo, sua forma própria de convívio, e seu grau de intimidade e cumplicidade com ela.
Também sentíamos um único medo, o de descê-la. Na verdade, o medo era de não conseguirmos subir de volta, atolados na aridez de sua areia fina, nos seus entulhos pedregosos ou na sua forma escarpada. Apenas os mais destemidos e maiores ousavam explorá-la, e eu, que não fazia parte dessa lista, nunca pisei o pé nela.
Quando batíamos baba (jogávamos futebol), nossa quadra era o estacionamento, vizinho à ribanceira, e a bola, depois de passar por alguma perna-de-pau, descia rolando o matagal, era um corre-corre, uma aflição danada, porque sabíamos que dificilmente seria recuperada. Os poucos que se voluntariavam descer, ou simplesmente não encontravam, ou, se encontravam, achavam a bola já furada. Lá existia a lenda que a ribanceira não gostava de bolas e acho que realmente era verdade.
Vez por outra ela ardia em chamas - incêndio provocado. Toda garotada se reunia para preparar um meteoro. Uma grande pedra era enrolada com folhas de jornal e barbante. Ateávamos fogo. Quando as labaredas ganhavam calor, lançávamos a bola incandescente matagal a baixo. E muito rapidamente as chamas se espalhavam por todos os lados, levadas pelo vento ascedente que sempre soprava forte. E ficávamos vidrados. Difícil descrever o sentimento que acompanhava a visão daquelas labaredas ofuscando nossos olhos. Era uma combustão aguda e fácil. A ribanceira estalava e salpicava, ardendo em brasa, invadida. E, sem oferecer a mínima resistência, padecia diante daquele gigante flamejante. E, nós, dezenas de meninos, ficávamos quietos, da mureta do estacionamento, apenas assistindo-a queimar resignada em plena luz do dia.
Queimar era a única coisa que a ela podia acontecer.
Logo a fumaça invadia os prédios ao redor e não demorava a chegarem os bombeiros com seus caminhões enormes, cheios de luzes piscando e sirenes ligadas, o que era, sem dúvida, uma atração a mais naquele acontecimento.
Sempre que vou lá a vejo da janela, ainda é a mesma.
Hoje, chegou a notícia de que voltou a queimar. Minha mãe disse que a fumaça e a fuligem estavam insuportáveis, telefonou-me angustiada.
Ainda hoje não sei definir que tipo de sentimento carrego em relação à ribanceira. Entendo que inúmeros brinquedos, bolas, bicicletas, times de futebol-de-botão passaram em minha infância e seus vestígios já foram levados pelo tempo, assim como os de muitos amigos que fiz. Já as recordações da ribanceira não, estão guardadas, logo ela que parecia ser um nada!
Suas lembranças permanecem vivas , e, assim como ela, renovam-se a cada meteoro que cai entre seus pés de mamona e suas bolas furadas..., entre seu mato alto.
Facilmente, posso ainda sentir seu vento correndo apressado, suas folhas chicoteando o ar, seu silêncio eterno.
Um comentário:
Deliciosa,
Valeu a espera!
Manellis
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