janeiro 03, 2007

A ESPERA E A LOUCURA

Conto de Alexandre Figueiredo

Todos achavam que ele havia enlouquecido de uma vez. Embrutecera. Dormia e acordava de cara fechada pra todo mundo e parecia só ficar satisfeito se ninguém o molestasse.
Não podia ouvir um ruído, uma conversa dentro de casa, um assobio se quer, que logo começava seu resmungo mau-humorado. E cravava um olhar indócil na gente, enquanto rezingava, e abria as ventas pra respirar até a gente calar a boca. Dava medo!
Nem de prosear com a vizinhança já não queria saber, nem com os compadres mais chegados. Quando apareciam, mandava dizer que estava dormindo ou com dor de cabeça. Era uma rudeza que só vendo!
Comentavam nas redondezas que a doença-ruim estava comendo seus miolos. Sem nenhuma explicação, trancafiou as portas e as janelas da frente e proibiu perambulação. Quem quisesse entrar ou sair de casa, que fosse pelos fundos, pela cozinha, quem quer que fosse. Que se lixassem!
Os netos, coitados, foram proibidos de jogar bola na varanda ou dentro de casa. Se quisessem, teriam de ir pro quintal e disputar espaço com as galinhas e seus pintinhos. E não teve conversa não. Se se excediam na correria ou nas gargalhadas, logo eram amasiados com beliscões e puxões de orelha. Era uma choradeira só, e quanto mais berravam, mais irado ele ficava e beliscava ainda mais forte. Era uma doidera!
Comigo era uma coisa séria, se eu deixasse cair apenas uma colher, tinha de ouvir muita bronca e ele ficava tão bravo que chegava a perder o apetite. Passei a tomar mais cuidado, principalmente na hora de lavar os pratos ou colocar os talheres na mesa. Não queria vê-lo enraivecido. Eu estava proibida de usar liquidificador, panela de pressão ou qualquer outra coisa que fizesse barulho. Até pra amaciar bife eu tinha de ir bater com o martelo no quintal. Nem meu rádio eu podia mais ouvir que ele virava o cão.
Também não deixava mais eu varrer a sala nem a varanda, já estavam em tempo de fazer vergonha! Em seu quarto eu só podia entrar para arrumar a cama e mais nada. Cada dia me vinha com uma desculpa diferente pra me ver longe de lá.
A televisão ficou muda, pra assistir minha novela eu tinha de ler a boca dos artistas.
Também desligou o telefone, dizia não estar a fim de conversa fiada.
É certo que nunca foi um amor de pessoa, mas estava diferente. Via-se que não era mais o mesmo. Passava os dias arrastando os chinelos, tranquilo... Ia do quarto pra sala, da sala pro quarto. Só às vezes aparecia na cozinha. E quase não ouvíamos a sua voz. Só se manifestava quando ouvia zoada, qualquer barulhinho o tirava do sério. Mal podíamos abrir a boca que logo vinha com o dedo esticado pedindo silêncio.
E, com frequência, eu o via espiando através das venezianas das portas e das janelas que davam pra frente da casa. Ia, ficava de ponta de pé, entortava o pescoço, mudava de ripa, olhava por um tempo, escolhia outra, olhava, depois voltava pro seu quarto, que também dava pro lado da entrada. Até de noite ele inventava de bisbilhotar pelas frestas. Parecia um vigia!
Às vezes, encostava o ouvido na janela e ficava ouvindo o vento. Coisa de doido mesmo!
Quando via que eu o observava, disfarçava e procurava outra coisa pra fazer.
Vivia trancado em casa e exigindo silêncio o tempo todo, parecia até estar se escondendo. Contudo, não aparentava medo, muito pelo contrário, era tranqüilo..., chegava a ser leso!
Outra coisa que o tirava do sério era ver alguém perto da varanda. Certa vez, pôs pra correr a Ritinha mais o namorado, que acharam de se escorar na mureta pra ficar de conversero. O homem virou uma arara!
Pior foi o que ele fez com o gato. Desde que eu vivo nessa casa que aqui tem gato. E já foram muitos..., brancos, malhados, pardos, até angorá ja teve! Mas, de repente, o homem tomou pavor. Botou o Bola numa caixa e tratou de despejá-lo no matagal lá de trás do morro. Nunca mais apareceu, nem tivemos notícia. E quando aparecia qualquer bichano nas redondezas, logo tratava de expulsar com um balde de água gelada no lombo. Vez por outra, ouvíamos um miado assustado correndo em disparada pelo telhado.
Noutro dia foi cedo pra feira e voltou cheio de vasos com flores, de todos os tipos, e..., em vez de colocá-los dentro de casa, não..., deixou-os na varanda, no lugar onde ninguém podia ir, e ordenou que ninguém mexesse, ele mesmo molharia. Nunca que o vi comprar flor! Sua mulher morreu sem nunca ter ganhado uma pétala se quer. Alegou que era pra homenagear a primavera, só que estávamos em dezembro. E quando murchavam, mandava, rapidinho comprar mais. Ninguém entendia!
Além de tudo, sem mais nem menos, apareceu com veneno de matar rato, mas fazia tempo que não via nenhum calunga por aqui.
Também não queria conversa com os cachorros, que agora ficavam na coleira o dia inteirinho.
De tudo, o que me deixava mais aperreada era o fato dele ficar bisbilhotando a varanda pelas venezianas. Podia ser de dia, de noite, de madrugada..., qualquer hora. Dava uma olhadela e depois recuava..., sempre mudo.
Até que um dia resolvi chegar lá.
Aproveitei o seu sono, e também o primeiro clarão de sol, que nem tinha nascido ainda direito , e rodiei por fora. Pulei a mureta da varanda e andei bem devagar pra que não acordasse - a janela do seu quarto ficava bem ali.
Encontrei muita sujeira no chão, tudo emporcalhado! Lá estavam os vasos com flores, todas bonitas, cheirosas, de diversas cores e tamanhos. Algumas até de longe, que ele mandava trazer.
Não demorou e avistei uma coisa, bem no canto, num dos galhos do jasmineiro. Vi um ninho bem pequeno. Nele estava um filhotinho de beija-flor. O pai e a mãe davam comida pra ele voando ao seu redor. Batiam as asas rápido que nem dava pra vê-las. E ele arregalava o bico, piava e secudia as asas. Parecia uma criança comendo doce!
Eu tomei um susto. Nunca que tinha visto ninho de beija-flor, e logo ali, quase dentro de casa. Uma lindeza! Fiquei paralizada..., só olhando. Me deu vontade até de chorar!
Eram tão felizes!
Quando o sol esquentou, tratei de voltar, bem quietinha. Fui para cozinha e preparei o café fazendo o mínimo de barulho possível. Não conseguia tirar aqueles anjinhos da cabeça! Era a natureza!
Quando ele acordou, disfarcei e não toquei no assunto.
Pelo tempo em que estava estranho, calculei que deveria estar acompanhando os passarinhos desde a espera, quando o pequeno era ovo.
Acho que depois desconfiou de mim, porque não mais precisou ralhar comigo por causa de zoadeira, eu fazia tudo com o maior cuidado pra não espantar os bichinhos.
Entendi sua loucura!
Logo que os três bateram asa e partiram voando, ele voltou ao normal.

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