Era para ser mais uma consulta pré-operatória mas, bem ao meu gosto, resolvi dar um break na banalidade do dia e transformá-lo em um ponto meditativo: a paciente estava prestes a se submeter a uma retirada de pólipo uterino (um crescimento anormal da mucosa uterina) mas seus olhos pareciam ter legendas que gritavam em pânico. Dois familiares seus tinham tido diagnóstico recente de câncer e um deles, um tio, estava com metástases disseminadas e no entanto nada sentia; se disse perplexa com o fato de ele ainda "estar andando por aí!".
Ora, ele ia andar por onde?
Perguntei-lhe.
Temia estar agora no rol das pacientes oncológicas e começou a consulta dando o fato como consumado.
Medo, muito medo.
Pensei na maravilha e na merda que é a profissão médica: nos dá credenciais para receber cumplicidades imediatas e reveladoras da alma humana e por outro lado, estraga os efeitos especiais dos filmes de terror!
O que pode ser pior: conhecer a evolução natural dos cânceres intratáveis e antecipar todos os problemas logísticos futuros diante de um diagnóstico consumado, como acontece com nós médicos, ou viver assustado pelas marés do acaso e pelos ventos da ignorância como ocorre com os leigos.
O medo, sempre o medo!
A antecipação do sofrimento, a idéia obsessiva indo e vindo, apoiada em incertezas, apagando a possibilidade de uma vida útil.
Como é comum!
Estamos sempre vivendo o primeiro dia do resto das nossas vidas e nem assim nos acostumamos com a idéia de um dia, deixar de sermos (assim mesmo, intransitivo!).
Disse à paciente que ao contrário do que concebem os leigos, vai ao médico fazer um check-up, aquele que busca uma doença, no seu estágio inicial é verdade, mas uma doença. O preventivo não previne nada, serve para ajudar o médico a entrar em campo mais cedo!
Parece simples, mas não é.
As pessoas acham, ou querem achar, que as visitas regulares ao médico são capazes de impedí-las de adoecer.
Só deveríamos buscar uma informação quando soubéssemos o que fazer tanto com a variante favorável quanto com a desfavorável.
Quem não se enquadra nesta definição é hipocondríaco ou simplesmente ignorante.
Teorizo informalmente que, não importa quão feliz seja sua vida, ela sempre terá aquele, que para você, será o maior problema da sua vida no momento; e aí, basta lembrar dos versos de Renato Russo que dizem "...muitos temores nascem do cansaço e da solidão..."
Citei para a paciente o caso do filósofo grego que, para não esquecer-se da morte, foi morar no cemitério e também aquele deboche que formula a felicidade como: nascer burro, viver na ignorância e morrer de repente.
Quantos extremos diante da única certeza!
Tomei simpatia (do grego sin, mesmo e pathos, caminho) pela ansiedade da paciente e contei-lhe de um diagnóstico recente entre os meus e da minha idéia de que a lembrança da morte é o espinho que devemos usar para nos fustigar em direção a uma vida mais significativa.
E continuei: a verdade é eterna pois é a única lei que até o criador, seja ele quem for, é contingenciado a seguir!
Quanto mais verdade houver em nossas mentes, maior parte dela vai sobreviver ao tempo.
A busca da salvação, seja ela o que for, é a busca da verdade nada cabe além disso!
De pensar quanto mal-entendido já se montou em cima dessa obviedade.
Break/
Aí vem Pilatos e pergunta prá JC: o que é a verdade? fale, rapaz!
O camarada fica lá...calado...
Não deu outra, virou instalção de arte no morro do calvário.
E nós, ainda não sabemos o que é a verdade.
Ninguém quer dizer!
Então descubra a sua e lembre-se: se errar, tá ferrado!
Going on...
Finalizei a logorréia lembrando-a de que o cometa McNaught está brilhando neste momento no nosso horizonte e partirá em algumas semanas para só voltar daqui a cem mil anos, quando talvez a humanidade já não esteja mais aqui; será que ele, que nos sobreviverá, mas vai um dia também morrer nos confins do universo, nos olha de lá do horizonte com o mesmo olhar de despedida com o qual às vezes contemplamos as pessoas com diagnóstico de câncer, mesmo aquelas que como disse a minha interlocutora:
"ainda estão andando por aí" ?
A lembrança da morte não é e não deve ser tomada como mais do que o espinho que foi feito para nos fustigar para diante; afinal de contas, disse outro filósofo: não a temo, pois onde estou, ela não está e onde ela está, eu não estou!
Diria-lhes ainda: a paciente era absolutamente saudável e exceto pela ansiedade, nada havia de errado com ela. Não fosse a minha disposição de divagar, a consulta teria sido simples, rápida e monótona como são a maioria das tarefas diárias de pessoas comuns.
Eu disse "c-o-m-u-n-s", não as que postam blogs e que que se propõem a postar regularmente alguma coisa que faça pensar!
Era exatamente meio-dia, meu estômago começava a roncar e eu depedi-me afetuosamente da paciente enfatizando o jejum pré-operatório entrando a seguir no primeiro minuto da primeira tarde do resto da minha vida.
P.S. O Mc Naught, com seu nome de promoção de Fast-food, vai embora como o mais brilhante e menos observado dos cometas que nos visitaram.
Bem diferente do que teria sido em 1910, a crer nos poemas que Carlos Drummond de Andrade dedicou a astro semelhante na Boitempo:
"Olho o cometa, com deslumbrado horror de sua cauda/
que vai bater na Terra e o mundo explode./
Não estou preparado. Quem está,/
para morrer? O céu é dia,/
um dia mais bonito do que o dia./ (...)
O cometa/ chicoteia de luz a minha vida/
e tudo que não fiz brilha em diadema/ e tudo é lindo./
Ninguém chora/ nem grita./
A luz total/
de nossas mortes faz um espetáculo."
Que o último a sair apague a luz!
seria a luz de um cometa?
Um comentário:
O poder da reza
Mistério: estudo mostra que uma reza retroativa ajudou pacientes anos depois da internação
UM AMIGO médico, Décio Mion, me fez conhecer um estranho debate que ocupou, de 2001 a 2003, as páginas do seríssimo "British Medical Journal".
Premissa: várias pesquisas, há tempos, mostram os efeitos positivos da reza numa variedade de condições patológicas. Documenta-se que o doente encontra benefícios (quanto ao andamento de sua enfermidade) no ato de rezar ou na consciência de que seus próximos rezam por ele. Até aqui, tudo bem: o paciente acharia assim uma paz de espírito que melhora sua evolução.
A coisa se complica: às vezes, as pesquisas mostram que a prece traz benefícios mesmo quando alguém reza por um doente sem que ele próprio saiba disso. Como explicar esses casos?
Talvez o benefício seja fruto de uma intervenção caridosa da divindade solicitada, mas essa explicação depende de um ato de fé que não cabe na interpretação de uma pesquisa científica. Além disso, é curioso que os benefícios apareçam seja qual for o deus ou o intercessor que receba a oração.
Resta, pois, imaginar que a intenção humana (o esforço cerebral de quem deseja que algo aconteça e reza por isso) tenha alguma realidade material (energia, partículas etc.) capaz de influir no andamento de um processo patológico. Estranho?
Nem tanto: afinal, até poucas décadas atrás, ignorávamos a existência de uma série de partículas que, segundo a física de hoje, povoam nosso universo. Por que as nossas intenções não movimentariam uma energia desconhecida, mas capaz de alterar o mundo físico? Nos EUA, nos anos 60-70, foram organizadas reuniões diante da Casa Branca com a idéia de que, se todos se concentrassem, a energia do dissenso faria levitar a residência do presidente americano. Embora cético, participei, convencido por um amigo que dizia: "Tentar não dói". Claro, não funcionou.
Ora, no fim de 2001, o "British Medical Journal", depois de um editorial lembrando que a razão não explica tudo, publicou uma pesquisa, de L. Leibovici (BMJ, 2001, 323), que registra os efeitos benéficos (em pacientes com septicemia) de uma reza afastada não só no espaço, mas também no tempo. Explico.
Foram incluídos no estudo todos os pacientes internados com septicemia, de 1990 a 1996, num hospital israelense; eram 3393. Em 2000 (de quatro a dez anos mais tarde), por um processo rigorosamente aleatório, os arquivos desses pacientes foram divididos em dois grupos: um grupo pelo qual haveria reza e um grupo de controle. Para cada nome do primeiro grupo, foi dita uma breve reza que pedia a recuperação do paciente e do grupo inteiro.
Resultado: no grupo que recebeu uma reza em 2000, a mortalidade foi (ou melhor, fora, de 90 a 96) inferior, embora de maneira pouco significativa; no mesmo grupo, a duração da febre e da hospitalização fora (ou melhor, havia sido, de 90 a 96) significativamente menor.
A publicação da pesquisa provocou uma enxurrada de cartas (BMJ, 2002, 324), algumas contestando as estatísticas, outras manifestando uma certa incompreensão do problema, que é o seguinte: como entender que uma reza possa agir não só sem que o paciente tenha consciência da intercessão pedida (com possível efeito psicológico positivo), mas à distância no tempo? Como entender, em suma, que uma reza dita em 2000 tenha um efeito retroativo em alguém que estava doente entre 90 e 96, quando a pesquisa e a reza nem sequer estavam sendo cogitadas?
Uma tentativa de resposta veio em 2003. O "BMJ" (2003, 327) publicou um interessante e enigmático artigo de Olshansky e Dossey, "History and Mystery" (história e mistério), em que os dois médicos dão prova de conhecimentos de física quântica muito acima de minha cabeça. O argumento de fundo é o seguinte: há modelos do espaço-tempo nos quais é possível que haja relações físicas entre o passado e o presente (ou seja, modelos em que o presente pode alterar o passado).
Que o leitor não me peça para explicar como isso aconteceria. As dimensões do "espaço de Calabi-Yan" e os "campos bosônicos", para mim, são tão obscuros quanto os ectoplasmas, os espíritos e os milagres.
Moral da história: embaixo do sol (ou da chuva), deve haver muito mais do que imaginamos, até porque nossa ciência está longe de ser acabada. Alguns colegas positivistas talvez durmam mal com esse barulho.
Eu não acredito nas paranormalidades, mas, em geral, durmo melhor ninado pelo mistério do que pelas certezas.
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