Não demorou pra eu descobrir, bom na astúcia que sou, outro sim, cairia fácil sem nem notar sua treta. E realmente era golpe bom, diria eu: infalível. E com aquele seu jeito manso, o desgraçado enganaria a qualquer um, já chegou estampando um sorrisinho relaxado de quem sabe que vai levar a melhor. Deixei..., e ele acabou levando mesmo! Mas não foi de todo mal...
Veio com uma conversa desinibida dizendo ter acabado de chegar na cidade. Não era moço bem aparentado não, mas usava roupa boa, e se via logo que não era daqui pelo jeito de falar. Trazia uma bolsa de alça e disse estar viajando a trabalho. Não estiquei a conversa, achei logo que ia tentar me vender alguma coisa, já ia o despachando, eu que não suporto vendedor me enchendo, quando me interrompeu e pediu uma única coisa: que o emprestasse uma panela com água e fogo, queria cozinhar sua sopa. Enquanto pegava um embrulho de papel da sacola. E emendou a conversa na certa justificativa de que aqui não existiam hospedagens, muito menos restaurantes...
Eu não pude dizer não, como negar a um pedido desse?! Negar uma panela com água?! Como...? E eu não sei negar por negar..., apesar de ser ele um forasteiro cheio de conversa pegajosa. Fiquei atado, aqui nunca chega ninguém! Mesmo a contragosto tive de consentir. Abri o portão. E como sabia que minha mulher não ia dar nenhuma negativa também, mandei-o entrar. Ele entrou com o embrulho na mão, já ensaiando abrir uma de suas pontas. Daí é que descarregou a falar bonito..., e falava com uma ponta de riso aberta e cheio de palavras bem explicadas. Desconfiei que isso fazia parte de sua maledicência. A Mazé, logo de cara, ofereceu-lhe ouvido, e foi aí que ele se soltou!
Coloquei água numa panela e acendi o fogo. A mulher já se divertia frouxa com a prosa dele, ela que é toda dada pra gente de fora e adora uma conversaria emendada...! Como eu não participava, ele falava olhando para mim, não no meu olho, mas voltado pra minha direção, como se preocupado em me ganhar. Sabia que eu desconfiava dele, e gesticulava as mãos e os braços, todo trejeitado, parecendo até artista. E o que fez foi coisa bem ensaiada mesmo!
Antes da panela esquentar direito, ele desembrulhou aquilo que havia trazido, e, muito rápido, colocou nela. Não vi o que era. A Mazé muito menos, que havia dado de costas pra pegar mais água que havia solicitado. A partir desse momento assumiu o fogão, pediu que nos afastássemos, ele mesmo faria tudo. E convidou-nos para compartilharmos a sopa, disse e redisse que seria um enorme prazer nossa companhia, faria o suficiente para nós três.
E contou a estória de um sócio que outrora tivera - Chico malatirado, que sobreviveu a treze tiros de espingarda..., depois descobriram ser cria do coisa-ruim. E tinha mais saúde que qualquer um de nós. Só com um metro e meio de tamanho derrubava boi bravo na mão, e sem nem apagar o fumo da boca. Disse ter visto uma porção de vezes...
Pediu uma colher-de-pau e sal. E começou a mexer na panela. Eu sentei na mesa, enquanto a Mazé arrumava a toalha e os pratos, vi que estava animada e sorria fácil. Vi também que colocou pães na mesa. Ele continuou a mexer a sopa e me pediu o favor de abrir um dos bolsos da sua sacola e pegar uma vela. Mandou-me acender e colocar sobre a mesa. E, cheio de bicos, disse que ia ser uma boa noite. Troquei olhares com a Mazé e seu olhar me pediu que fizesse. Fiz.
Ele continuou contando suas estórias, emendava uma na outra que nem dava tempo da gente falar nada. A sopa já fervia quando ele perguntou se não teria umas folhas-de-louro e massa de macarrão. Depois pediu um pouco de óleo. E continuou a mexer. Não parava de tagarelar. Disse ter aprendido aquela receita com seu avô, que era caixeiro-viajante; depois contou umas estórias dele e de outros esquisitos parentes e agregados.
Olhei para a mesa e vi que a Mazé havia posto não os pratos do dia-a-dia, e sim aqueles guardados para ocasiões de festa, e que só usávamos uma ou duas vezes por ano (nesse ano não tínhamos usado ainda!). E ainda tinha posto na mesa a garrafa de vinho que seu irmão havia nos dado no natal. Achei estranho, ela que é sempre tão comedida, não concordei de pronto, mas o jeito como estava entusiasmada me desarmou de qualquer ação contrária.
O cheiro de sopa já ganhava a cozinha. Ele a mexia freneticamente. Pediu mais uns temperos, e, a cada dois ou três minutos, experimentava lanbendo as gotas que deixava pingar da colher na palma da mão. Fazia com certa estranheza, esticando a boca em bico e espremendo os olhos. Provava pouco a pouco, e a cada prova, acrescentava ora um, ora outro ingrediente que pedia a Mazé. Tenho que admitir que fazia bem feito, cheio de artimanhas, parecia afinar uma viola, nunca vi daquele jeito.
Mais adiante pediu calabresa e charque, que foram cortados em pequenos cubos e jogados no caldo. Ainda pediu farinha de cuscuz para engrossar o caldo. Em seguida retirou do bolso umas pequenas folhinhas, que também foram acrescentadas à mistura, mexeu em mais três voltas e bradou: "Acabou! Mais um minuto de fervura e estará pronta! Sentem-se que eu mesmo terei o prazer de servi-los"! Não deixou a gente se aproximar da panela.
A Mazé pediu que eu abrisse a garrafa e servisse o vinho. Ela me olhava com o olho macio..., não retruquei. O forasteiro estava seguro, acho até que passou a se sentir em casa, repetia a serventia daquela receita, que já vinha de muitas gerações passadas. Eu não acreditei nem um pouco nessa sua conversinha, continuava desconfiado dele, mas não quis delongar naquilo, queria mesmo era que acabasse e fosse embora.
Ele desligou o fogo e sentou-se junto a nós na mesa. Pediu um brinde e nos agradeceu a gentileza. Disse estar feliz e realmente se comportava como tal. Acho que estava mesmo..., os trouxas caindo em sua conversa...! Bebemos e comemos pão, enquanto a sopa "respirava", como ele referiu. A Mazé aproximou seu prato e sentou-se ao meu lado, enquanto ele, todo articulado, nos serviu; depois serviu a si. Não tirou a panela do fogão. Nisso ele não parava de contar seus causos. Falou de um pássaro-preto seu, já falecido de tuberculose, que solfejava as músicas do Pixinguinha. Isso mesmo..., não cantava não..., solfejava! E inventou mais umas outras mentiras depois...!
Admito que a sopa estava boa e repetimos os pratos. Ele esbanjou ainda mais sorrisos com os elogios da Mazé. Vi que ela estava contente, dificilmente recebemos visita e a casa sempre anda vazia depois que os meninos foram pra cidade. Eu até estava satisfeito, por ela, é claro! Mas, continuava incomodado: um forasteiro que não olhava no meu olho, dentro da minha cozinha, cheio de proserê...! Eu estava certo que tinha coisa diferente ali, só ainda não sabia o que era.
Lá pras tantas, depois que a garrafa secou, ele levantou-se, nos encheu novamente de graças e disse que precisava partir, afirmando compromissos de trabalho e saiu apressado. A Mazé ainda ensaiou oferecer-lhe repouso, mas eu sugeri mesmo que era hora dele ir. Aí já era demais! Então, ele foi até a panela e, de um jeito meio dissimulado, tirou de lá uma pedra. Uma pedra...!!! Lavou-a na torneira, enrolou naquele mesmo papel de embrulho, nem se preocupou em enxugar, e guardou-a na sacola. Até que ele tentou disfarçar, mas eu vi. Era oval, cinza e bem lisa! Eu a vi, perfeita entre suas mãos inquietas.
Enfim entendi, tínhamos tomado sopa de pedra!
Então, ele ainda sorrindo, agradeceu acenando com as mãos e se foi, bem ligeiro, sumindo no negrume da noite. Havia concluído seu golpe.
Nada falei. A Mazé muito menos, estava meio tonta de vinho e ainda suspirava contentamento com a mesa posta pra festa. Ajudei-a a recolher os pratos e copos usados, fechamos a casa e fomos dormir.
Conto de Alexandre Figueiredo
Comentário post:
As coisas de Alexandre ficam tão bacanas que dá vontade de transformar em cabeçalho!
Por falta de coragem de pendurar uma coisa em cima desta peça que acho que seja um presente a tantos quantos passarem por aqui, deixo na figura à esquerda o link torrent para o disco mais esperado destes últimos 8 anos: Rock'n'roll da melhor qualidade pela banda australiana mais famosa de todos os tempos.
Ir para o trabalho vai ficar menos tedioso nos próximos dias!
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