Parafraseando Toninho Horta, "...almoço aos domingos, a velha farra/ Todos vão inventando novos segrdos..."
A roda tinha começado formalmente, passou para as piadas curtas, casos leves e agora todos se revezavam contando casos pessoais com um "quê" de sobrenatural.
Por ordem hierárquica era sua vez de falar:
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- Bem gente, como vocês sabem, eu sou um homem de ciência e, não sei se feliz ou infelizmente, não professo nenhuma fé; devo confessar-lhes no entanto que um episódio do início de carreira médica me intriga até hoje: recém formado e já com alguns trabalhos publicados e algum destaque acadêmico, fui chamado para uma consulta a domicílio num terreiro de candomblé. Ao chegar encontrei um lugar amplo e arejado com pessoas elegantes deslocando-se em todas direções com tarefas aparentes a serem realizadas. Fui recebido por uma filha-de-santo que me cumprimentou brevemente e já foi logo dizendo: "Salve sinhôzinho, espírito forte, protegido por muitos. Ninguém nunca há de fazer-lhe mal!"
Nada mal para uma recepção, pensei que poderia ser uma espécie de gentileza mística destinada a "me amaciar" para uma consulta mais cordial com a babalorixá.
Não podendo crer que tenha sido combinado ou mesmo que fizesse parte do protocolo para com os visitantes médicos, fui saudado da mesma forma pela paciente/babalorixá que tinha ido ver.
Ela foi mais além e listou meus protetores dizendo o que cada um faria com cada tipo de inimigo eventual que aparecesse em meu caminho.
Aquele interlúdio mitológico permeado pelo cheiro de arruda e carregado de simbolismos e imagens vívidas em prosódia afro-baiana me hipnotizou sem no entanto se constituir num auto de conversão.
Terminei a consulta, prescrevi a paciente e refiz contato para saber da evolução.
A paciente melhorou, apresentou remissão dos sintomas e passou a me convidar para as festas anuais do terreiro, inclusive as fechadas. Por outro lado, minha vida seguia um curso calmo e tranqüilo sem que, digamos assim eu pudesse por à prova o poder dos meus guardiães espirituais.
Logo a seguir começaram as coincidências: um antigo namorado da minha então futura esposa me ameaçou fisicamente - com ciúmes - vindo a me agredir num segundo encontro quando notei, antes de levar um direto e desmaiar, o nome dela escrito numa tatuagem: "Mina, sem ti, a morte".
Acordei nos braços de Mina, que em prantos me disse que meu agressor fugira.
Fugiu e nunca mais apareceu. Pouco tempo depois soube que tinha adoecido gravemente e morrido com um câncer no braço tatuado (!)
De lá para cá, os adversários caíam como moscas após se declararem.
O último, morreu ao atravessar a rua logo após sair de uma reunião em que me denunciava, sem fundamentação, por falta ética na condução de um estudo clínico.
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Os relatos dos casos intermediários foram feitos com um requinte de detalhes compatível com um verdadeiro deleite do narrador com o desfecho dos casos.
Mesmerizados, contemplávamos o semblante de regozijo do protagonista sobrevivente ao mesmo tempo em que fazíamos uma operação lógica para fundir a recém-encerrada narrativa com a imagem de que tínhamos do narrador: uma pessoa formal, lógica, racional e absolutamente descrente em metafisismos.
A minha conclusão foi a de que a fantasia da transcendência habita todos os corações sempre à espreita de uma série de coincidências para gerar um profeta ou, no mínimo, um cientista perplexo!
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