Cabia-me anestesiá-lo para que fosse submetido a uma endoscopia (dessas que olham o esôfago, estômago e duodeno). O corpo emaciado, os dedos da mão de um arroxeado cadavérico e uma respiração ofegante (que sorvia em grandes goles gasosos o oxigênio proveniente do cilindro do qual dependia para viver) completavam um quadro ao qual era impossível ficar indiferente.
Apresentei-me e comecei a colher sua história médica meticulosamente a fim de registrar todos os eventos pregressos que o tinham trazido a tal estado. Com a voz entrecortada pela falta de ar, contou-me que sua vida, até cinco anos atrás, tinha sido só felicidade; corretava imóveis, era relativamente famoso e respeitado, fazia seu horário de trabalho com direito a uma ida à praia e a uma refeição gourmet todos os dias, todos os dias! O dinheiro fluía naturalmente e a esposa e filhos caracterizavam-se por serem fontes regulares de admiração e regozijo.
Há cinco anos começou a sentir-se fraco, perdeu peso e após investigações que duraram 1 ano, recebeu o diagnóstico de tuberculose. Não era um homem religioso mas começou a perguntar-se o que poderia ter tido feito para, no auge de sua carreira, ser acometido por tal infortúnio. Estava tuberculoso e a tuberculose que tinha contraído era causada por um bacilo extremamente resistente e que demandou muitos meses de tentativa para poder ser considerado vencido por uma combinação numerosa, cara e agressiva de quimioterápicos.
Nesse ínterim tinham se passado seis meses de internação hospitalar e dois anos de homecare. Tinha agora uma reserva pulmonar menor que 40% do normal, pesava 45 quilos e tinha dificuldades para deglutir e se manter de pé.
Neste momento, o motivo do exame era uma dor abdominal excruciante insensível às mais poderosas combinações de analgésicos passíveis de uso clínico.
Chequei as medicações em uso e coloquei-o para dormir com o auxílio drogas anestésicas.
A luz da sala foi apagada e, coincidindo com a perda do reflexo córneo-palpebral (sinal clínico de hipnose) notei que uma névoa azulada e cintilante começou a exalar de seu nariz sem ser aparentemente percebida por nenhum dos presentes além de mim. Num canto da sala, num ponto diamentralmente oposto ao foco das atenções (o monitor da endoscopia) a névoa se condensou na figura de uma mulher jovem com roupas normais num espectro de mais ou menos uns 70% de transparência; chamava atenção, no entanto, uma mancha vermelho rutilante abaixo da região da mama esquerda. Após se recuperar daquilo que pode ter sido um esforço de condensação, a mulher começou a murmurar: “...agora falta pouco, desta ele não escapa e com sua morte, acabo com o serviço...”
Mal conseguia processar mentalmente estas palavras quando fui avisado pela equipe, do início do fim do exame - aparentemente normal; suspendi a infusão do hipnótico venoso e me virei para a direção onde o espectro da mulher estava. Agora, não conseguia mais vê-la com nitidez. Estava voltando ao formato de nuvem e se dirigindo para o paciente, mais especificamente para suas narinas. Num reflexo que não consigo explicar, fechei as narinas do paciente com os dedos em pinça e pedi para que a luz fosse acesa imediatamente. A nuvem azulada pairou diante de mim e se transformou numa boca que me advertiu enfaticamente a não intervir naquela situação pois a sua vingança era legítima: aquele homem (um corretor) era o último envolvido ainda vivo num caso de assassinato da herdeira de uma mansão que mais tarde foi vendida por fabulosa soma em proveito de seu marido, o assassino, já morto em um acidente de trânsito.
O tempo estava passando rapidamente enquanto o paciente sob meus cuidados ficava cada vez mais asfixiado pela minha manobra cerca fantasma - a apnéia que eu estava provocando-lhe seria absolutamente inócua a um paciente comum, mas não a ele, na sua condição! – o tom do oxímetro foi ficando cada vez mais grave até que o paciente bradicardizou e sofreu uma parada cardíaca sob o olhar atônito dos presentes que ignoravam totalmente o embate no qual me envolvera. A boca espectral emitiu um suspiro fétido – sentido por todos – e desapareceu sob luz totalmente acesa não sem antes dizer: obrigado, idiota!
Olhei para o paciente, clinicamente morto e não conseguia acreditar na confusão na qual acabara de me envolver. A visão começou a ficar turva, um filete de suor frio escorreu pelo meu rosto e eu comecei a perder o equilíbrio. Antes que chegasse a cair, alguém sustentou-me com os dois braços e colocou-me em pé sem que eu pudesse ver seu rosto ou mesmo detalhes da sua roupa.
Senti imediatamente à seguir, uma sensação de restabelecimento de energia e lucidez até então inédito na minha vida, meu olhar percorreu a sala e para meu espanto todos estavam em animação suspensa; o relógio da parede, parado! Ao meu lado, um espectro diverso do que tinha se esvaído, me transmitia calma e palavras de segurança; agradeceu-me por ter obstruído a reinalação do obsessor e pediu-me que comprimisse minha unha do polegar direito contra um ponto no lábio superior imediatamente abaixo da implantação do septo nasal do paciente. Realizei a manobra solicitada e testemunhei, como se fora um passe de mágica, a volta dos batimentos cardíacos bem como de sua respiração. O fluxo do tempo começou a voltar ao seu ritmo normal enquanto ouvia as últimas palavras do meu inesperado ajudante: “não se preocupe, eles não se lembrarão de nada!”
O paciente se recuperou normalmente e foi encaminhado para sala de recuperação sem que ninguém, entre os presentes, demonstrasse o menor indício de ter presenciado tão estranhos acontecimentos. Na sala vazia, restei ofegante como que ao final de uma maratona. Preenchia a ficha clínica do procedimento com as mãos trêmulas quando a funcionária da limpeza chegou, olhou para sala, olhou para mim, deu um sorriso e disse: “Nossa, parece que teve uma guerra aqui, vá descansar meu filho!”
A sala estava limpa como de costume e não sei onde ela teria visto tais sinais de guerra. Resolvi não perguntar; terminei a ficha e me despedi do staff do setor.
Meses depois, sem quê nem pra quê, a mesma funcionária me abordou no corredor para dizer-me que o paciente daquela manhã sobrenatural tinha voltado ao hospital em excelente aspecto, corado e alegre procurando por todos para agradecer pela assistência recebida quando daquela ocasião. Tinha me deixado um cartão com tons azulados no qual se podia identificar uma boca com uma legenda logo abaixo: Agora já posso respirar!
Fiquei curioso, curiosíssimo!
Liguei para sua corretora – conhecida na cidade – e fui informado que o atual telefone era agora de um escritório de advocacia. A corretora tinha fechado e seu dono aberto uma pousada em Itacaré.
O nome?
Nuvem Azul!
Se tiver tempo ainda vou procurar este camarada!
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