outubro 10, 2007

Naldinho x Julião

Um experimento com bebês mostrou que mesmo muito pequenos, temos uma espécie de sentimento natural de justiça: crianças de um ano se estressam profundamente tentando mostrar a uma pessoa da qual gostam onde está escondido um objeto dela que foi escondido deliberadamente por uma outra pessoa. Num grupo de 20 bebês, apenas 2 em média não transpareciam tal inquietação. Adivinhe o que vão virar quando crescerem?
Acho, sem falsas modéstias, que sempre fui da turma dos 18 mais estressados mas isso não me impediu de rejeitar algumas profissões de caráter altamente altruístico como bombeiro, padre ou policial. Infelizmente derrapei na curva médica e caí no despenhadeiro anestésico que, cá por estas bandas, é impossível de ser freqüentado sem um certo espírito de sacerdote. O dia-a-dia é divertido e variado para quem tem um punhado de neurônios funcionais e que leve o descanso a sério. O humor brota das mais inusitadas situações e uma delas me veio à cabeça nesta que será minha última intervenção no Morpheus antes de voltar do descanso anual (tem gente que deve tá me achando muito descansado!); Nesse meio tempo, acontecerá aniversário de Morpheus em 21 de outubro, data do primeiro post (data também da passagem de Fernão de Magalhães pelo estreito que recebeu seu nome e que permitiu a circunavegação do globo - do mesmo jeito aliás, que faz um post!); de lá prá cá um monte de gente apareceu, leu e, prá minha alegria registrou presença no contador atiçando uma espécie de vaidade redacional que ainda continua caótica mas que mostra potencial. Hei de recarregar as pilhas e voltar para contar mais coisas.
Antes de ir-me por alguns dias, deixarei-lhes no entanto, o relato de uma bela manhã num centro-cirúrgico de um hospital universitário qualquer no interior de São Paulo onde uma turma eclética de residentes em anestesiologia do 2º ano exerciam sua rotina diária.

Causo:

Toda vez que olho para alguém como profissional, seja em qual área for, não posso me conter de imaginá-lo ainda criança, indo para escola, despedindo-se do pai, imaginando-se dentro de uma vida épica e carregada de emoções.
Talvez seja por isso que sempre me pareceu um certo mistério a escolha de algumas pessoas, depois de passarem por todos os funis da sociedade, por algumas profissões ou especialidades (no caso dos médicos) de exercício excessivamente limitado na sua rotina habitual. Por exemplo, você consegue imaginar alguém indo para escola, carregando merendeira, entrando no ginásio, lendo Machado de Assis, passando no vestibular, estudando 6, 8, 10 anos para a seguir virar um...proctologista! Difícil né, mas se todo mundo pudesse pilotar um avião, não haveria comissários de bordo!
Mas antes que eu me esqueça, esta é a história de um embate entre Naldinho, um mineirinho muito sabido e Julião um proctologista imenso e de viés neandertalês.
Naquela manhã, ao checar seu nome no mapa cirúrgico, Naldinho se viu escalado para fazer anestesia num paciente a ser operado por nosso troglodita supra-citado.
Pronto, já estressou!
Felizmente seria uma cirurgia de hemorróida, procedimento que Naldinho daria conta com um pé-nas-costas. Pensou consigo: é só fazer uma "raquizinha" e pronto, estamos em novembro e com um pouco de sorte, esta será minha última anestesia para este tigre.
Naldinho tinha caído em desgraças com Julião e sua gangue por conta de ter conquistado o coração de uma residente de oftalmologia (especialidade diametralmente oposta à de Julião!), linda como uma manhã de primavera, a quem Julião assediava insistente e improdutivamente em proctologês arcaico. A linda loirinha era a única criatura capaz, apenas com sua presença, de forçar o nosso especialista terminal a ficar intermináveis 10 min sem soltar um palavrão sequer!
Para supremo ódio de Julião, Arnaldinho namorou com a moça apenas por um mês, deixando-a por uma japonesa que segundo o próprio, sempre lhe fazia matutar sobre eventuais diferenças anatômicas. Desde então, a musa proctológica se arrastava atrás do nosso mineirinho como um carrinho atrá de uma criança tendo inclusive passado um pito em Julião quando este tentou, cheio de inveja, agredir Naldinho verbalmente com piadas de cirurgião (não me darei o trabalho de dar exemplos pois são absolutamente incompreensíveis).
Naldinho tinha consciência de tudo e era por isso que aquela hemorroidectomia estava lhe estressando tanto. Já sabia que no curto período que duraria a cirurgia seria alvo de todo tipo de infâmia.
Não se abateu, solicitou a bandeja para fazer a raquianestesia e procedeu o bloqueio de forma irretocável. Para azar de Naldinho, o hospital tinha mudado de fornecedor de anestésicos locais e agora estava comprando de um laboratório ainda novo na área mas que já gozava de uma certa fama negativa com relação à qualidade de seus produtos (não admira que fossem mais baratos!).
Não deu outra, passaram-se 5, 10, 20, 30 minutos e nada da anestesia pegar.
Julião deu um risada Draculesca e disse prá Naldinho:
- Êh mineirim de merda, já vai sair da residência e nem uma raqui sabe fazer! queria que a Patty estivesse aqui agora pra ver a "incopetênça" (sic) desse poço de sensibilidade que ela diz qu'oçê é.
Naldinho, creio, estava num dos piores momentos da sua vida de mineiro sabido mas, numa decisão protocolar, decidiu: vou fazer uma anestesia geral e pronto, tá resolvido!
Solicitou o material para fazer a conversão para anestesia geral e o funcionário encarregado foi providenciar. Julião percebeu a manobra e resolveu tirar o máximo de proveito da fragilização de Naldinho passando agora a aterrorizar o paciente indefeso na mesa, com ameaças de iniciar a cirurgia assim mesmo, sem anestesia nem nada!
O clima de terror já estava instalado com as risadas de Julião, os dichotes dos residentes de proctologia, a cara de pavor do paciente e a demora do funcionário que finalmente chegou e entregou o material solicitado por Naldinho.
Naldinho olhou, conferiu e percebeu: estava faltando o anestésico inalatório!
Nossa!
Seriam pelo memos mais 5 minutos de pavor e constrangimento até a chegada do anestésico que faria o paciente dormir.
Julião percebeu o momento e disse em 120dB:
- Eu não vou é mais esperar p* nenhuma, o paciente tá amarrado na mesa e eu tô atrasado; vou começar assim mesmo! Aliás, não sei como é que vocês anestesistas chegaram a escolher uma profissão que os obriga a trabalhar com este cheiro enjoado boa parte do tempo! Auxiliar, passe me bisturi!
O tempo pareceu parar,
O paciente gemia como um herege na frente de um inquisidor, Naldinho suava sangue, o auxiliar estava lívido, os residentes de procto babavam perante a vingança do chefe e os curiosos que se ajuntaram pareciam estar diante de uma ritual azteca!
Julião levantou o bisturi e disse para o auxiliar de sala:
- Se Patty, que está lá no conforto médico, perguntar de onde vem os gritos diga a ela que é da "incopetênça" gritante do queridinho dela, ha, ha, ha, ha, ha...
Naldinho num momento de desespero, se preparava para sair da sala e ir, ele mesmo, buscar o anestésico na maior velocidade possível.
Foi quando, por algum milagre da físico-química, orgânica e farmacológica a raquianestesia que parecia ter falhado por completo, se instalou!
Como é que eu sei?
Pelo assovio sinistro emitido pela porção terminal da vítima a ser operada!
Fiuuuuuuuum!
Sim, aquela singularidade contraída pelo medo relaxou-se como uma rosa que desabrocha em mil botões hemorroidários. Ato contínuo a este relaxamento ouviu-se o ruído de uma nuvem de gás que estava em plena evasão dos intestinos do nosso aterrorizado paciente.
Como todo mundo sabe, sala de cirurgia não tem janela e naquele dia o ar condicionado não estava na sua melhor saúde contribuindo para enjaular Julião e os seus no meio daquele futum tornado indispersável
Uma espécie de filial das câmaras de Auschivitz!
Um dos residentes de procto empalideceu e ameaçou desmaiar; Julião jogou um campo cirúrgico no chão para que ele se deitasse e o impediu de sair criando o primeiro desmaio solidário da história!
Naldinho olhou pro céu (pro teto, quero dizer!) se benzeu e disparou:
Ô Julião, cê sabe porque é que eu faço anestesia e ocê, procto? porque cada um trabalha com o cheiro que gosta!
Gargalhadas espocaram de tudo quanto era lado.
O paciente desmaiado de emoção, não testemunhou esta apoteose e aparentemente, acho que pelo estresse, não se lembrou de nada quando foi perguntado na sala de recuperação.
Ainda naquele mesmo dia, um Julião humilhado foi pedir à secretária de anestesia que nunca mais escalasse Naldinho para trabalhar com ele!
Também naquele mesmo dia, Naldinho ganhou franquia no bar da Avenida do Café com direito a várias e várias rodadas de cerveja e torresminho pagas em sucessão pelos residentes de todas as especialidades que não puderam assistir localmente a queda do Golias proctológico!

Despeço-me por alguns dias, durante os quais lembrarei muito do Morpheus porém sem esquecer Nelson Rodrigues que disse que "A abstinência é o melhor afrodisíaco!"

Inté!

P.S. Como recomendação de leitura fica o mais novo livro de um historiador inglês sobre a Espanha Moura:

Livro: ANDALUZ
Sub Titulo: DESVENDADO OS MISTÉRIOS DA ESPANHA MOURA
Autor: Jason Webster
Tradução:Ana Deiró
ISBN:9788532521835
Páginas:256
Formato : 14x21
Preço : R$ 38,50

Sinopse

Determinado a descobrir as raízes mouras da Espanha contemporânea, o jornalista Jason – homônimo e alter ego do autor do livro, Jason Webster – visita clandestinamente uma fazenda em Andaluzia, onde imigrantes ilegais marroquinos são mantidos na lavoura num regime de semi-escravidão. Descoberto pelos capatazes, ele é alvo de uma perigosa caçada e se vê obrigado a fugir do local. Para escapar, conta com a assistência do esperto e determinado Zine, que acaba também se livrando das garras de seus ‘patrões’. É na companhia do marroquino, que Jason embarca numa viagem em busca das marcas deixadas por quase 800 anos de ocupação islâmica na Península Ibérica. O resultado está em Andaluz – desvendando os mistérios da Espanha moura, lançamento da Rocco para a XIII Bienal do Livro do Rio de Janeiro.

Este é o segundo romance do autor anglo-americano Jason Webster sobre a Espanha. Apaixonado pelo país, onde é atualmente radicado, ele já explorou a dança flamenca em Flamenco. "Eu tenho uma teoria de que a Espanha ainda é, na realidade, um país mouro", diz Webster para Zine em Andaluz. "Só que escondido, disfarçado por trás de uma fachada externa católica e européia." "Se este é um país mouro", responde o imigrante ilegal, "por que não me dão um emprego?"

O atual preconceito contra povos islâmicos – principalmente os marroquinos, os mais próximos geograficamente – é uma forma de negar o imenso legado que os árabes deixaram naquela parte do planeta. Entre 711 – quando um pequeno exército árabe do norte da África invadiu o Estreito de Gibraltar – e 1492, ano em que os reis Ferdinando e Isabela retomaram o controle católico, grandes partes do país foram governadas pelos mouros.

Sem saber, muitos espanhóis ainda seguem os costumes dos antigos conquistadores. Culinária, dança e música são as influências mais óbvias. Mas há também referências no simples cumprimento "hola" e o famoso grito da torcida "olé" – que seriam duas formas diferentes de invocar "Allah". Webster cita até influências cifradas ao Islã em Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, expoente máximo da literatura nacional.

Essas e outras descobertas o leitor faz ao lado de Jason e Zine, que viajam de carro pela Espanha – e partes de Portugal – à procura de uma oportunidade de trabalho para o marroquino. Uma maneira fascinante de descobrir não só a beleza e riqueza cultural da Espanha, mas também mergulhar na história singular desta nação, que, sob domínio árabe, viveu em harmonia durante a conturbada Idade Média, para depois enfrentar a intolerância religiosa gerada pela Inquisição.

Allah Akbar!

Nenhum comentário:

Related Posts with Thumbnails