Crônica de Alexandre Figueiredo
Era mês de agosto.
Mais um domingo cinzento. No meio da manhã o celular toca. Atendo. Uma voz conhecida me cumprimenta cordialmente, era um colega médico que eu já não via há algum tempo. Sem muitos rodeios, disse que precisava de uma ajuda, e, laconicamente, foi direto ao assunto: tinha uma cadelinha de estimação e esta, pelo avançar da idade e pela gravidade de uma doença que havia contraído, fora desenganada pelo veterinário. Não entrou em muitos detalhes. Acrescentou que, pelo fato de ser médico, fora autorizado a conduzir tal evento em âmbito doméstico. Dizia portar uma receita com os nomes das medicações indicadas, contudo, por tratar-se de um domingo, não conseguia aonde comprá-las. Prosseguiu dizendo que lembrou da minha competência profissional e resolveu telefonar-me, acreditava que eu talvez pudesse encontrar uma alternativa, ou até mesmo conseguir-lhe uma das drogas. Não podia esperar, tinha de resolver a questão naquele mesmo dia, por àquelas horas. Quando disse que eu estava de plantão, não se deu de rogado e falou que já estava se dirigindo ao meu encontro. Nem mesmo deu pra ouvir minha resposta e foi desligando.
Nunca antes eu havia feito coisa parecida, mas, dada sua aflição, desejei realmente ajudar. Não deu trabalho em arranjar uma droga com tal propriedade no arsenal anestésico do hospital. Guardei a ampola no bolso, juntamente com o necessário diluente, e aguardei a sua chegada.
Após uma demora menor que a prevista, chegou. com polidez me cumprimentou, trocamos palavras comuns, sorrisos e tapinhas nas costas. Ao mesmo instante, recuperei na memória seu jeito simples e simpático, contudo achei-o envelhecido não tão distante em que havíamos nos vistos pela última vez - a tez um tanto pesada e os cabelos quase totalmente brancos. Também o achei mais magro. Repetiu-me o que havia falado antes ao telefone, e, resignado, lamentou pelo pobre animal.
Não prolongamos a conversa, ele demonstrava sinais de que não queria se demorar ali e eu precisava retornar ao atrabalho. Nos despedimos e, antes que fosse embora, dei-lhe algumas rápidas instruções de uso e de como aproveitar todo potencial daquele fármaco. Perguntou se era um relaxante muscular. Achava, pelo nome, que era o mesmo que o veterinário havia prescrito, entretanto lamentou-se por ter esquecido a receita, dizia querer ter me mostrado. Depois, pedi que me desse notícias do acontecido, apenas por mera curiosidade.
Voltei à minha rotina. Lá pelo fim da tarde, lembrei do episódio. Não poderia deixar de considerá-lo incomum - e admito que tenho uma certa atração por situações cotidianas incomuns.
Pensei em como seria praticar um ato como esse. Mesmo sendo médico, nunca assisti a morte acontecendo por inteira. Insinuando..., chegando..., crescendo..., invadindo..., sobrepujando..., evoluindo passo a passo, e subindo (ou descendo) degraus até o final. Não devia ser nada muito agradável de promover, ainda mais se tratando de um animalzinho querido. Não sei explicar, mas veio-me na cabeça à lembrança da história de Baleia e Fabiano. Ele havia usado a espingarda.
Imaginei como seria a desventurada cachorrinha, qual raça, nome, idade, cor, tamanho. E do que sofria. No meu pensamento, eu a via branca malhada de preto. Não sei por que, só me vinha na cabeça a imagem de perfídia, uma cachorrinha branca malhada de preto, que mora na casa vizinha à minha. E eu a enxergava estirada no chão, paralisada, ressequida, decrépita. Achei que Baleia também era alvinegra.
Por outro momento, relembrei da figura um tanto abatida do colega. Pensei no quanto seria difícil medir sua angústia. Parecia estar realmente sofrendo, até porque me disse nunca ter vivido uma experiência parecida.
E no pensamento seguinte, talvez impulsionado por uma notícia recente de suicídio, confabulei comigo mesmo: aquele colega poderia sim ter me pedido a medicação para fazer uso em si mesmo. Arrepiei-me. Desgraça!
Alguns fatos foram trazidos à tona em questão de segundos - estávamos no mês do azar; o dia estava pra lá de melancólico; a pressa dele em conseguir a tal droga; a falta de detalhes sobre a cadela enferma, sua aparência angustiada; a ausência da receita; a conversa rápida e sem rodeios. Por que não?
Era certo que ele nunca anteriormente havia demonstrado, como se chama, uma atitude suspeita, mas eu tenho conhecimento de outras histórias que aconteceram de maneira totalmente inesperada.
Fiquei com aquela idéia ruminando em meu juízo, angustiado. perguntava-me infinitas vezes: será? Tentava inutilmente me convencer que não havia motivo para tal desconfiança, mas ela me rondava intrépida.
Com esse pensamento me entrincheirando, logicamente passei a me sentir culpado. Questionei-me por não ter prolongado a conversa, quem sabe dialogando um pouco mais não poderia identificar algum indício de sua intenção, um transtorno momentãneo, perceber algum comportamento estranho. E, assim, inventar uma desculpa para não entregar-lhe a droga. Mas eu não era um amigo considerado próximo, e também ele estava com pressa, parecia querer logo executar o que tinha em mente, e não permitiu maiores delongas.
Eu passei a esperar com ansiedade que me ligasse para contar sobre a eutanásia canina. Esperava, esperava e o telefone continuava indiferente. Já até pensava em motivações, o que levaria uma pessoa a ato tão extremo? Solidão, desilusão, doença? Ele nunca pareceu ter nada disso!
Mas, algo continuava me perturbando. Tentava afastar esses pensamentos e eles continuavam a seguidamente a chegar. Cheguei até a antevê-lo lívido e esticado no chão da sua casa, com seu queixo miúdo ainda mais miúdo.
Já há noite, decidi por telefoná-lo. Eu continuava angustiado. Apenas sabia o número do celular e não consegui contato. A ligação só terminava com o sinal da mensagem para caixa-postal. Repeti-la algumas vezes, também sem sucesso. O que só aumentou minha preocupação. nessa hora, senti aquela possibilidade mais real, era mais um indício. Resolvi ligar para um outro amigo comum para tentar obter o número do seu telefone de casa, mas, da mesma maneira, não tive êxito.
Eu estava ficando realmente perturbado, maldizia aquele instante em que lhe entreguei o maldito veneno. telefonei pra minha esposa, precisava dividir esse problema com alguém. Ela ouviu atenta, fazendo os mesmos questionamentos que eu já tinha me feito. reiterou que ele parecia uma pessoa tão equilibrada, tão tranqüila. Depois de uma rápida análise, concluiu que não era possível, apenas o seu celular estava desligado porque era domingo à noite e todos os celulares ficam desligados nos domingos à noite. recomendou que eu tentasse falar com ele na segunda e que eu não me preocupasse mais, o que acatei sem ressalvas, estava mesmo precisando ouvir isso.
No dia seguinte voltei a telefonar. Nada, nem sinal. Tentei pela manhã, ao meio-dia, à tarde, por diversas vezes, e em todas elas dava o sinal de aparelho desligado. Deixei inclusive um recado na caixa-postal. Nenhum contato. também não consegui falar com aquele amigo comum, também havia desaparecido.
Eu já nem lembrava da tal cachorra e me sentia estranho em perceber cada vez mais real a possibilidade de ter contribuído com ato tão covarde e pecaminoso.
Na terça-feira, insisti mais uma vez e não consegui contato. Já até esperava receber a notícia-ruim a qualquer momento.
No fim da tarde, tentei de novo e ele atendeu: "Aaalô"!
Dei um longo suspiro... Aquela única palavra encerrou horas e horas de angústia e ao mesmo tempo me libertou daquelas insuportáveis compunções. na mesma hora em que voltei a ouvir a sua voz, veio-me a lembrança da cachorrinha. Disfarcei a minha satisfação, um verdadeiro grande-alívio, e disse-lhe, emendando a conversa, que havia ligado para saber como havia sido no domingo. Logicamente, não comentei sobre meus lúgubres pensamentos. Desculpou-se por não ter dado o devido retorno, referiu desatenção.
Então, falou como havia sido difícil atentar contra Luma.
Referia-se como "pobre Luma". Disse que a cachorrinha pertencia à sua filha e justificou a pressa naquele dia - queria desfechar antes que a mesma chegasse em casa, na sua ausência. deu outras informações, dizia tratar-se de uma cadela muito querida, quase uma pessoa da família. Havia contraído sinomose, uma doença viral incurável, e não havia outro jeito a dar.
Descreveu com detalhes o que havia acontecido.
Enquanto o ouvia, eu imaginava a Luma espiando seu dono, desconfiada, assistindo-o diluir o veneno, sacundindo o diluente dentro da ampola. Depois, via-o aspirando com a seringa apontada para o céu. Pensei também em como tentou inutilmente esgueirar-se, atravancada pela amaldiçoada doença. Até que, finalmente, sentiu a agulha penetrando-lhe, depois a droga percorrendo suas veias e paralisando pouco a pouco cada músculo, até sufocar de vez. Pensei nela assistindo o mundo lhe fugir, semiviva, semimorta, desesperada. Coitada!
Ele concluiu dizendo que a droga havia sido perfeita, disse também nem ter dado tempo dela suspirar. Agradeceu-me mais uma vez e nos despedimos.
Desliguei o telefone.
Logo em seguida pensei novamente em Baleia, e no que Luma lhe disse quando a encontrou lá em cima. Pelo menos com ela havia sido diferente.
Um comentário:
Ufa,
Até saber o desfecho do relato também fiquei anguntiada.
Pena pela pobre Luma e graças pelo seu amigo.
Abraços.
Tia Bel.
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