agosto 24, 2007

A Boca Livre de Cervantes para os prazeres ainda por serem vividos

O ano: 1980
A situação, risível insólita, digna de lembrança!
A cena musical de Salvador estava em plena fermentação e um dos agentes deste bolor eram as
apresentações de uma tal "Projeto Pixinguinha" (o cartaz ao lado é de uma re-edição de 2004) ; o tal projeto era composto por shows semanais múltiplos, a preços populares, de bandas que estavam pleiteando seu espaço dentro da MPB de então.
Abertura política, a sombra asfixiante dos monstros do anos 60 e 70's etc e tal.
A Cor do Som, Roupa Nova, Boca Livre, Pepeu & Baby, 14 Bis entre outros.
Às 18 horas em ponto, os portões da Concha Acústica (do Teatro Castro Alves) se abriam e uma leva de estudantes secundaristas (alguns já bêbados!) invadiam as arquibancadas para curtir um som, namorar e tomar umas. Tal época, de feliz lembrança, foi o início de meu sincero apego à MPB. Nascia ali, com aqueles shows e sob doses excessivas de bebida vagabunda um militante emocional da causa da canção popular; de Patativa do Assaré às complicações harmônicas de Toninho Horta!
Eis que, numa bela tarde de baiana vacância na substância destes belos anos, atendo uma chamada de minha mãe que, ligando do trabalho (gerenciava um hotel), dava-me conta que 4 músicos muito simpáticos lá hospedados, estavam me presenteando com um disco e um convite para o show na próxima edição do Projeto Pixinguinha.

Meus olhos brilharam!
Seria a A Cor do Som?
Estava acabando de aprender a versão de Armandinho para Assanhado, de Jacob do Bandolim e mal podia me conter de emoção em presumir estar vivenciando uma "simultaneidade" (se não sabe o que é, vá ler Jung!) tão feliz.
Balbuciei ao telefone:
- M-M-Mãe, é o pessoal d-d-d-a A Cor do Som? Deixe-me falar com eles, qualquer um!
Minha mãe respondeu com um tom desapontado:
-Não, querido, é o pessaol do...do...do...Boca Livre, um conjunto de arranjos vocais!
-Ih mãe, isso é lá nome de banda! Não precisa mandar nada não! Se ainda fosse a -A-COR-DO-SOM-!
A conversa foi interrompida e, após minha mãe explicar a minha reação ao pessoal, um deles (não sei qual!) insistiu mesmo assim, em me mandar o disco e o convite fazendo uma advertência: é pena que ele não nos conheça, mas prevejo que isto não vai durar muito tempo e que este disco vai fazer parte de sua vida e de suas memórias!
O disco era um LP de vinil independente com uma capa em P&B e letras azuis cujas músicas vieram, para acerto do vidente, realmente a fazer parte não só da minha vida, como da de tantos outros meninos/meninas da mesma idade.
Apesar de tudo e relutantemente, fui ao show.
Não é que os caras eram bons?
Voltei sôfrego para ansioso por tirar as músicas do disco.

No entanto, as tais músicas de beleza aparentemente simples, eram extremamente difíceis de reproduzir: Pedra da Lua, Barcarola do São Francisco, Diana e a descon"s"ertante versão vocal de Ponta de Areia!
Senti-me humilhado pela perfeição simples daquelas canções e suas dissonâncias. Mais tarde, daria-me conta de que, naquele momento, estava diante do ramo harmonicamente mais complexo da árvore da MPB: a "tar" da música mineira! (da qual ainda me considero um estudante de secundário!).
O tempo passou e, em recente show do Boca (viu a intimidade?) em Salvador, vi como
as canções deste disco foram importantes na minha vida e como eu ainda sou perplexizado pelos vocais e violas daquela banda que conheci há 27 anos atrás!
Um casal amigo, que não os conhecia (sim, isto é possível!), comentou: "engraçado, não conhecia nada deles, mas achei muito lindo!"
Lembrei-me então de um episódio atribuído a Vargas Llosa quando alguém disse-lhe que ainda não tinha lido Dom Quixote, de Cervantes: ele conta que olhou para o interlocutor nos olhos e disse com toda sinceridade invejar-lhe o prazer que sentiria quando isto acontecesse; prazer este que, degraçadamente, não lhe
(a Llosa) era mais possível repetir!
Ainda gosto de várias canções de A Cor do Som, mas gosto praticamente de todas do Boca Livre!
Curioso não?
Hoje penso, como seria ouvir "Pedra da Lua" pela primeira vez, esta que se tornou a minha maneira preferida de relembrar minha Mãe.
Sim é certo, mãe a gente só tem uma; certas coisas, no entanto à nossa revelia, às vezes, nos invadem o relicário só para fazer-lhe companhia.
Se você não conhece o tal disco, clique na figura da capa e vá lá, com o amigo Fulano, buscar este pitéu!

Um comentário:

Fulano Sicrano disse...

Caro Manellis, pitéu é também essa sua crônica. Grande abraço.

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