Parte I
Num santuário tropical, cercada de mar e fartura, na outra banda do glofo do Benin, reinava Aihab; uma linda princesa filha do gigante Lisarb, um rei rico e preguiçoso que vivia na pobreza e na imundície somente como conseqüencia de suas sérias e atávicas dificuldades de raciocínio. Lisarb era enorme, lento e indolente como são todos os gigantes nascidos em lugares quentes. Muito devia de sua liberdade à valente filha, outrora uma mulher rica e feliz de cuja história será extraído um significativo episódio.
Para que se entenda um pouco das premissas desta narrativa, é preciso falar um pouco de Lagutrop, o malvado feiticeiro do reino dos bacalhaus que, às custas de expedientes escusos, muito longe de sua terra natal, logrou manter o gigante Lisarb cativo por longos longos anos e ainda por cima fazer da linda Ahiab, contra sua vontade, sua esposa.
Forçada a casar-se inda imatura, Aihab cresceu triste sob o jugo do esposo tirano (como aliás disse um dia o poeta Gregório) até que um dia, revoltada contra a servidão impingida a Lisarb, pegou em armas e conseguiu, não sem muita luta, separar-se de Lagutrop e libertar o pai no segundo dia do sétimo mês de um ano de um passado qualquer obtendo sucesso onde um dia fracassara uma outra filha de Lisarb: Sanim Siareg
Humilhado pela derrota, despeitado pela perda da companhia de Aihab e revoltado pela perda da servidão do gigante Lisarb, Lagutrop fugiu numa manhã cinzenta levando consigo tudo que havia de cor branca no principado de Ahiab. As ondas perderam a espuma, a areia ficou cinzenta e até mesmo a lua ficou amarelada e o céu sem nuvens enquanto que as pessoas morriam jovens antes mesmo que lhes aparecesse o primeiro fio de cabelo branco, como prescrevia o desejo de Lagutrop.
Engana-se quem pensa que terminam aí os problemas de Aihab: não contente em causar tão grande prejuízo a sua ex-esposa/escrava, Lagutrop jogou-lhe um feitiço que lhe causaria dificuldade de engravidar; em conseqüência de tal desgraça, Ahiab passaria então a ser vítima do desprezo do mal-agradecido pai, apesar dos inúmeros netos brilhantes que lhe tinha dado. A partir de então, Lisarb só teria olhos para Oir, seu filho menor, devasso e violento, transformado agora em seu conselheiro mais direto.
Infelizmente, os planos de Lagutrop funcionaram como foram concebidos e Ahiab, a partir de então, viveu dias de pobreza, decadência e esquecimento. Mesmo assim, diz-se, teria conseguido encantar estrangeiros, que vistando-a por acaso decidiram morar ao seu lado pelo resto de suas vidas. Parece-me ter sido este o caso de uns tais Bernabó, Fatumbi, Poetinha e outros que não caberia citar. Mas o tempo, como é do seu feitio, passou e, para consolo de Aihab, transformou a breve fama de Lagutrop em ilustre anonimato exercido da ponta de um rochedo em forma de jangada de onde contempla entediado o frio mar que o bordeja sem nenhum servo, nem gigante nem pigmeu, que lhe sirva de companhia.
Parte II
Do lado de cá do vasto oceano, cansada de sofrer e sem ter para si um Charles Bovary que a conduzisse a um baile de sonhos, Ahiab rezava às suas divindades pedindo a remissão dos seus infortúnios e um filho que pudesse inaugurar uma nova época de alegria em sua vida.
Foi então que um dia, após fazer suas orações e repetir os pedidos, Ahiab viu sair de dentro de uma touceira de bananeiras, perto do lugar onde orava, uma mulher que trazia nas mãos um capucho de algodão. Ela se aproximou e o entregou cuidadosamente ao tempo em que fazia as seguintes recomendações: aqui tens o fliho desejado, leve-o à sua praia mais bonita nas próximas três luas cheias deixando-o ao sereno por uma hora de cada vez , a seguir você deverá guardá-lo na sala de instrumentos musicais de seu reino onde, após dois invernos, nascerá um menino lindo que te fará mais bela ainda, cantará tuas belezas e devolverá, com sua voz, o branco da arrebentação e da areia que cerca tuas lagoas e que orna tuas praias, também a lua voltará a ser branca; ele desposará uma estrela do mar e terá no oceano um sogro e também um amigo de quem ouvirá, tanto quanto queira, todos os segredos da vida. Tal menino fundará a canção e após ele, sobretudo após ele, tu, Aihab, jamais te envergonharás de nada, nem mesmo, quando por momentos, a sorte parecer desfavorecer-te. Para vingar-te elegantemente, tal menino encantará a filha mais linda e alegre de Lagutrop e com ela, a cantar suas canções, encantará o mundo em honra do nome do preguiçoso do teu pai. Lagrutop, por sua vez, ficará onde está: triste, pobre e burro na companhia de sua gorda e triste Amélia enfadado pelo fado do destino.
Dito isto, a mulher desapareceu.
Aihab cumpriu então as determinações da feiticeira cujas previsões se cumpriram à risca, inclusive a de que o menino viveria uma vida longa e feliz (no seio de uma numerosa descendência) que duraria em torno de um século ao longo do qual colecionaria discípulos e admiradores.
Uma vez chegada a velhice do outrora menino, seus cabelos brancos não haveriam de deixar que Aihab esquecesse do dia em que a feiticeira lhe ofertou tal presente.
Contou-me assim um anjo, durante um delírio onírico numa manhã de sonhos recorrentes, o mito do nascimento do príncipe da canção, após o que pediu-me que invertesse o nome dos outros personagens para saber quais eram suas verdadeiras identidades.
Complemento mitológico
Não poderia no entanto, deixar de contar-lhes que, com medo de que o capucho de algodão não vingasse, Aihab arrancou-lhe um pedacinho e, após submeter identicamente tal pedacinho aos mesmos rituais de fecundação, guardou-o na sala dos sacrifícios e de execução de inimigos como que a ignorar o destino de seres gestados em tais ambientes. Anos mais tarde que o príncipe da canção, nasceria então um menino malvado e valente que ora parecia amar a mãe, ora parecia odiá-la e querê-la morta. O infeliz menino estaria condenado a morrer sozinho agonizando a falta do coração que ficou no pedaço maior do capucho do qual originara-se o príncipe cantor.
A partir daí minha memória começa a falhar mas tenho a impressão de ter ouvido do anjo que o pedacinho destacado por Aihab correponderia justamente a uma parte do sorriso do seu povo, o qual poderia ser que retornasse de forma plena quando o dito pedacinho fosse reintegrado à substância universal.
Até onde eu sei, continuam vivos o príncipe e o pedacinho.
Parece-me que Aihab, chegada a hora, pranteará inconsolavelmente a morte de ambos!
E prá você que sempre quis saber de onde Tarantino tira suas idéias, veja abaixo:
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