abril 18, 2007

O luar, o cego e as marés

A medicina exercida no gueto cirúrgico tem seu "quê" de estressante mas, pela oportunidade que oferece aos colegas médicos de interargirem, não deixa de ser um interessante lugar para elucubração filosófica com a particularidade de podermos observar como vão as cabeças de uma parcela, queiram ou não, privilegiadíssima da população: educação formal completa, aprovação em curso de grande concorrência, atividade dentro da profissão escolhida etc.
Apesar de todos estes "privilégios", nota-se entre os médicos, sob o verniz dos anos de estudo adicionais, as mesmas características da população (geral) da qual ela se origina: x% de profissionais competentes, y% de charlatães, z% de idiotas, d% de deficientes mentais, loucos, paranóicos, deprimidos etc.
Por outro lado, temos entre os médicos, o maior índice de pessoas que exercem até o fim da vida a sua primeira opção profissional, o profissional de maior credibilidade técnica junto à população e um dos de maior carga horária de trabalho (e estudo!) semanal etc. Estas últimas características (e mais algumas que eu não vou citar porque sua paciência tem limite) faz a individualidade da profissão médica que simplesmente cai por terra quando médicos, informalmente reunidos, param para conversar antes do início da jornada de trabalho no centro cirúrgico, principalmente na Bahia onde o encadeamento das indolências transforma as covencionais 7:30 da manhã (o horário de início das cirurgias) em desesperantes 8:30 ou 8:45´s.
O tema deste post foi colhido numa destas situações quando, depois de termos discutirmos algumas amenidades, um colega médico brandindo um jornal num misto de raiva e inconformismo, disparou:
- Eu não agüento este cara, este tal de Gilberto Gil; sabem, eu fui vizinho deste bosta! é fui sim, morávamos ali na Roça do Lobo (limite atual entre o Garcia/Politeama e o Vale dos Barris em Salvador) e ele ficava com aquela sanfoninha ou com um violão o dia inteiro! ficava brincando de fazer jingles e falando que ia ser músico, que ia tocar no rádio etc; e como era gordo, inchadinho mesmo! Minha mãe sempre comentava: esse aí não vai dar prá nada, bem faz você, meu filho, que está estudando e um dia vai ser médico. O tempo passou e esse cara se meteu num monte de confusões: foi preso, foi expulso do país, fala um monte de coisa de que ninguém entende, beijou homem na boca, faz umas musiquinhas mais ou menos e continua tocando o mesmo violãozinho de merda que tocava naquela época! Após tudo isto esse cara vira ministro! em dois mandatos! e vive correndo o mundo, e falando em inglês, e francês e numa linguagem, que de tão complicada, só ele mesmo entende.
Será que ninguém se dá conta que esse cara não vale tudo isto?
Agora, tá aqui, o jornal dizendo que ele vai ser a figura mais esperada num super festival na América! (sim, é assim que alguns baianos ainda se referem aos Estados Unidos). Dizem que ele é pioneiro no movimento do copyleft!

Ora, ninguém nem sabe o que é isto; dá prá ver logo que o que tem mesmo é uma bruta falta de criatividade: este nome foi puxado de copyright!
Sabem? eu saco estes golpes de mídia no nascedouro!
- Fim da manifestação -

Um espetáculo, não?
Abriu-se uma janela no tempo/espaço e eu fitei brevemente o manifestante inconformado com uma disposição amável e tolerante: tinha à minha frente um médico de aproximadamente 60 e tantos anos de idade, cabelos (e bigode tipo pincel de barbeiro) pintados de preto na tonalidade "coroa tarado", tentando pôr na cegueira do mundo e na degeneração da sociedade a culpa do ostracismo de sua vida ( e supostamente de sua arte) em oposição ao sucesso de pessoas como aquele "tal" de Gilberto Gil.
O bigode, cinto e sapatos pretos que costuma usar, mesmo com roupas brancas, sublinham fluorescentemente suas freqüentes idiossincrasias escutadas em silente aquiescência pela sempre presente e convicta esposa que o auxilia nas cirurgias.
O episódio tinha tudo para ser esquecido mas não foi; não sei se por variação de voltagem na minha CPU cerebral, foi armazenado à minha revelia e, analisado posteriormente, não sem umas boas risadas internas, levou-me à constatação que finaliza este post:
A genialidade (em qualquer forma) e a mediocridade (mental) são forças absolutamente tirânicas da natureza: não oferecem margem alguma de negociação aos seus escolhidos: o gênio não consegue não ser genial e o medíocre, por sua vez, não consegue se livrar nunca de sua condição de tetraplégico mental. Para onde quer que olhe, o medíocre não enxerga o real e o gênio, por enxergar apenas o surreal (sur, do francês "sobre"), não tem limites: seus projetos e seus feitos não são individualizáveis; o gênio, mesmo parado, está realizando!
Na canção "Luar", Gil cita indiretamente Galileu quando canta: o Luar existe só para ser visto, se a gente não vê, não há!
O nosso amigo revoltado não consegue ver (como aliás, muita gente!) onde pessoas como Gil se mostram geniais; ele é um cego e a genialidade é como o luar: imperceptível, inexistente, capaz apenas de provocar variações involuntárias de humor da mesma forma que a lua faz com as marés!

P.S.
Muitas são sem graça,
Algumas apenas engraçadinhas com prazo de validade.
Pouquíssimas são realmente engraçadas.
Saudades do Morpheus a Nair Belo, em quem a inteligência manifesta sob a forma de humor, representava também uma forma de luar.
P.P.S: Você já imaginou a felicidade daquele que vive com uma mulher que sabe (realmente!) contar piadas?

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