A música faz parte de minha vida desde épocas anteriores à do nascimento da minha autoconsciência.
Já ouvi muita coisa e me apaixonei serialmente por muitos gêneros musicais vida afora numa longa história que tem como divisor de águas a minha decisão de tocar um instrumento.
Portátil e acessível, escolhi o violão e com ele como nau tenho atravessado os momentos mais agitados da vida no bom e no mau sentido. Ele segue comigo desde então sempre silencioso e inútil para os que não lhe conhecem os mistérios a me aguardar chegar do trabalho com paciência e elegância de um galgo inglês.
Por vezes me parece mesmo uma tela que, branca de silêncio, ilustra o espaço sob o comando dos meus humores toda vez que o empunho transbordando de sentimento.
É assim um instrumento... vazio por dentro e tão cheio de vida!
Quando estou em paroxismos de paixão violonística, sinto-o mesmo como uma prótese super integrada; uma parte do meu corpo; talvez quem sabe, um substituto da minha mímica facial!
Suas partes perecíveis (se é que assim pode-se dizer) são as cordas que um dia foram de tripa e que hoje são de nylon ou aço da mais alta tecnologia.
São oferecidas no mercado a preços variados e qualidades também.
Vitais, como tudo que vibra, com o passar do tempo envelhecem e perdem timbres auxiliares até soarem de forma desagradavelmente abafada
Eis que chega então a hora de serem substituídas
Trocar as cordas, no entanto, é uma das tarefas mais enfadonhas e demoradas na vida de um violonista seja ele amador ou profissional.
Trata-se de algo que se adia a não mais poder.
Perde-se tempo para trocar e para obter um estado de equilíbrio que permita a manutenção de uma afinação estável.
Um saco!
Adiar a troca das cordas é um exercício de procrastinação ao qual se entregam gentes boas de todo mundo violonístico, inclusive eu!
Digo-lhes pois...
Tudo isso para testemunhar que vejo o envelhecimento das cordas e suas consequencias como um excelente ponto sobre o qual meditar!
Com a perda gradual do brilho do som perde-se também o entusiasmo de tocar e assim, por conta da preguiça, vamos tocando cada vez menos um repertório cada vez mais limitado em função do empobrecimento timbrístico de um item de reposição periódica concientemente negligenciada.
Chega então ao fim a primeira semana durante a qual não empunhamos uma vez sequer o instrumento até que numa olhada de relance...
Notamos que a 4ª corda (Ré) se partiu!
Por característica de fabricação, não sei, ela geralmente é a corda que parte-se primeiro de forma espontânea.
Puxa, mas logo agora que eu queria dar uma tocadinha!
Abandonado há mais de uma semana, o violão foi alvo dos efeitos afrodisíacos da abstinência prolongada e agora, como uma esposa negligenciada, simula uma...dor de cabeça!
Bom...
Não tem jeito!
Agora, a troca do encordoamento é imperativa.
E então, lá se vai uma tarde inteira trocando e afinando as cordas que, rebeldes, insistem em folgar sub-repticiamente por horas a fio.
Isolado do contato social, afinando seu violão, você purga dentro de si a consciência, agora sublinhada, da brevidade de tudo e não só de um mero jogo de cordas de nylon!
Veja só,
A 4ª corda, moribunda, teve que se suicidar para forçar-lhe a um ato de renovação.
Que lama, irmão!
Passadas as agruras da retomada da afinação, não rao, nos dias e semanas seguintes, o entusiasmo pelo violão volta e vc aprende até mesmo algumas novas canções num ímpeto renovado de amor pelo instrumento, pela música, pela vida até que...o processo recomeça e vc repete toda história mais uma vez até um novo suicídio da 4ª corda!
Felizes de nós se todas as nossas paixões complexas tivessem uma 4ª corda suicida para constranger uma renovação.
Infelizmente não é assim.
De forma análoga ao que acontece com o violão, muitos encordoamentos na nossa vida caducam e perdem o brilho de uma forma lenta e gradual sem porém exibir um evento crítico que nos force a tomar uma atitude.
Ao abandonar este instrumento de cordas velhas, abafadas mas inquebráveis, morre-se um pouco até que, sob o manto de uma racionalidade rabugenta, sem nenhum instrumento de felicidade ao alcance das mãos, algumas pessoas passam a achar tudo inútil e ridículo quando na verdade estas condições sempre estiveram presentes!
Conscientézimo do exposto, orientei minha secretária do lar a, depois de passar uma semana inteira sem ouvir-me tocar, que, independente do estado de desgaste do encordoamento do meu violão, passe a tesoura na quarta corda!
Desta vez, não mais um suicídio e sim um crime de mando!
Ou, se preferir, uma eutanásia!
A visão da corda cortada sempre faz-me revisar os vários encordoamentos da minha vida que por acaso estejam sem o brilho timbrístico necessário sendo que, não raras vezes, me adiantei e troquei a tempo alguns deles.
Venho assim, às custas de rotinas pouco ortodoxas, mantendo afinada a minha orquestra biográfica!
Renove-se voluntariamente!
Boa Páscoa.
Um comentário:
Olá:
Parabéns pelo texto.
Muito bom.
* Seu blog foi muito bem recomendado por um colega seu.
Valeu a visita.
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