O tempo é realmente "a" dimensão!
Tempo parado é fotografia; tempo em movimento é cinema
Todos concordam que um filme possa exibir fotografias mas uma fotografia exibir um filme?
Bem...
Tudo aconteceu no longínquo, quente e preservado estado do Piauí, esta glória nacional que representa tudo que Minas podia ter sido e não foi: uma tonelada de sertão e uns quilinhos de litoral.
Também pudera!
Foi esticar seu biquinho em direção ao Mato Grosso do Sul...
Sifu!
Para ser preciso, o episódio tem 40 anos. O personagem principal é um velho conhecido nosso: Tio Rui
O corpo de Tim Maia com o sorriso de Bob Esponja no auge da sua juventude como quintanista do curso de medicina em visita à família em São Raimundo Nonato, sertão piauiense.
Era janeiro e Ruizinho (não ruinzinho!) saiu de Minas onde fazia faculdade para visitar familiares cruzando sertões e navegando poeiras sem fim num trajeto de muito desconforto desde Belô até a calorosa metrópole piauiense onde sua dinastia tinha feito base.
Na chegada, uma multidão o aguardava.
Na chegada, uma multidão o aguardava.
A grande recepção na rodoviária tinha dois motivos: o primeiro, a saudade e o amor dos familiares por aquele expoente intelectual da família que agora retornava, prestes a receber seu anel de esmeralda, para rever os seus; o segundo, como parente mais graduado da família na área, caía ele do céu como o candidato natural para acompanhar o querido, idoso e bem doente Tio Nenzinho para fazer uma consulta médica em Teresina.
Oh não!
Tantos Kms de prato principal e, agora, mais alguns de sobremesa em nome da família.
Tio Rui não se abalou; é um homem de princípios e para ele a família é simplesmente tudo. Além do mais, Tio Nenzinho, seu mentor de infância, era o responsável pelo pequeno repertório de malandragens que conhecia e pelo seu imenso talento para contar estórias.
Malas em casa de mãe, prato preferido devorado, noite de descanso usufruída, lá estava Tio Rui à porta da casa de Tio Nenzinho, acompanhado do motorista da ambulância municipal (único aparelho da secretaria muinicipal de saúde), para um épico transporte pelo sertão Piauiense.
O motorista da ambulância não se continha de excitação pela viagem em companhia de um médico de verdade (ou quase!).
Comandou a remoção de Tio Nenzinho para a ambulância com autoridade presteza e determinação só vistas em filmes.
Começava a epopéia...
Começava a epopéia...
Já dentro da ambulância, Tio Rui resolveu compor um quadro mental com o diagnóstico do tio e o algoritmo de procedimentos. Pensou, pensou, pensou e concluiu: mifu!
Os pés inchados de Tio Nenzinho se confluiam num tronco abaulado pela barriga cheia d'água que por sua vez se afinava num tórax esquelético e arfante e finalizava num pescoço magro com veias aparentes e num rosto amarelo-palha coroado por cabelos quebradiços.
Por trás daquela poliesculhambose, no entanto, emanava o sorriso terno de um Nenzinho que contava-lhe estórias e encobria seus mal-feitos de criança.
Era preciso ser leal, era preciso levá-lo para se tratar!
Tio Rui respirou fundo e deu o comando: para Teresina, chauffeur!
E a viagem começou...
Tome-lhe poeira, calor, mal-estar e todo cardápio de desconforfortos nesta que é nossa versão do deserto do Senegal
E a viagem começou...
Tome-lhe poeira, calor, mal-estar e todo cardápio de desconforfortos nesta que é nossa versão do deserto do Senegal
Instável no fundo da ambulância, Tio Nenzinho balançava nas curvas e saltava nos buracos com uma galhardia tal que levou o motorista a dizer, num ímpeto de descontrole, que se o problema fosse causado por algum órgão fora do lugar, ao chegar a Teresina, o paciente estaria curado!
Os Kms passavam lentamente mas a ampulheta existencial de Nenzinho se esvaia depressa sem que todo o pó da estrada pudesse acrescentar míseros minutos
Os Kms passavam lentamente mas a ampulheta existencial de Nenzinho se esvaia depressa sem que todo o pó da estrada pudesse acrescentar míseros minutos
O 15º round se aproximava veloz enquanto Tio Nenzinho respirava mal e mal e, já perto de Teresina, nas palavras de Tio Rui, Nenzinho respirou, respiorou, piorou, orou e parou!
PQP!
Sacanagem!
Nadou, nadou e morreu na areia!
Se bem que no Piauí, o nadou, nadou também aconteça na areia.
Oh Shit!
Oh Shit!
Constatado o óbito, era preciso voltar para o sepultamento em São Raimundo com as honras que lhe cabiam.
Mas naquele calor...
O que fazer?
O corpo chegaria putrefato e impediria a cerimônia que a família sempre montava para ocasiões tais.
O motorista da ambulância se antecipou e sugeriu: é Dr Rui...só "embarsamano"!
Santa ignorância!
Ao final do quinto ano, Tio Rui nunca tinha embalsamado ninguém e tampouco sabia por onde passava os trâmites do processo.
Tantalizado pelo momento e sua demanda, Tio Rui saiu do transe pelas palavras do motorista: vá dizendo, vá dizendo o que quer que o Sr. prescise que eu vou buscar,
Aqui em Teresina a gente acha de tudo!
Aqui em Teresina a gente acha de tudo!
Tio Rui sentiu-se mal e sentou para ofegar de uma forma mais confortável naqueles 44°C com 20% de umidade enquanto o Tio Nenzinho começava, à revelia dos circunstantes, literalmente, a fermentar!
Era preciso pensar rápido!
E Tio Rui pensou...
Algumas mangueiras, formol, água, cal, um funil... sei lá... acho que basta, concluiu tenso sob os olhos expectantes de um motorista de ambulância solícito e prestativo.
Era preciso deliberar!
Algumas mangueiras, formol, água, cal, um funil... sei lá... acho que basta, concluiu tenso sob os olhos expectantes de um motorista de ambulância solícito e prestativo.
Era preciso deliberar!
Mandou o corpo para o IML local e, citando amigos influentes da aristocracia Nonatense, conseguiu espaço para, por assim dizer, "embalsamar" o corpo.
Eviscerou o cadáver com o máximo cuidado e perfundiu o corpo com formol diluído em concentração 100 vezes superior à necessária por um motorista-de-ambulância-assistente-de-embalsamamento, digamos assim...
Um tanto desatento!
Um tanto desatento!
Já nos momentos seguintes ao procedimento, o cheiro já era fortíssimo a exalar do corpo vitrificado de Tio Nenzinho.
Mas...tudo bem!
Agora podia-se seguir viagem.
A urna foi fechada e isolada no compartimento de transporte da ambulância agora transmutada em um albino rabecão.
O formol excessivo passou incólume e despercebido pelos condutores isolados na cabine até a reabertura do caixão para o velório em São Raimundo.
Lá, segundo Tio Rui, nenhuma morte tinha sido ou seria para todo sempre mais pranteada que a de Tio Nenzinho.
A saudade da sua figura ímpar e o formol intoxicante que exalava da urna faziam chorar até os cães que passavam na rua pela porta da casa.
Pela primeira vez, as carpideiras da cidade choravam sem um pingo de fingimento!
E isso foi notícia!
E isso foi notícia!
Fora o cheiro forte, ninguém percebeu nada de estranho exceto Tio Rui que sabia do erro na diluição do formol mas que já colocara o motorista na prateleira dos prestativos inimputáveis.
Pranteado (e muito) o falecido (o padre chorava a cântaros durante a missa comovendo toda a assistência), procedeu-se o sepultamento.
Após o luto regulamentar a vida voltava ao normal
Após o luto regulamentar a vida voltava ao normal
Desde então, cinco anos se passaram com visitas anuais de Tio Rui sempre marcadas pelas histórias rememoradas do saudoso Nenzinho regadas a longos goles de cajuína até que um dia...
Num intervalo entre as visitas anuais de Tio Rui...
Eis que de repente, não mais que de repente...
Morre subitamente...
Tia Juju
A viúva de Nenzinho!
Espanto, comoção, gritaria, chororô, saudade e toda sorte de sentimento que costuma cercar este tipo de evento.
Passado o choque, o planejamento!
Como desejado, Juju seria enterrada no mesmo lote de Nenzinho o qual, para ceder lugar, teria seus ossos exumados para uma prosaica caixinha de plástico onde ficaria a espera do desencarne efetivo de sua amada e do próximo falecido da família.
Qual não foi a surpresa quando, durante a exumação, se viu que Nenzinho tava lá inteiraço e, pasme, esboçando um leve sorriso! (um provável efeito da retração dos músculos perorais pela concentração absurda de formol usada no seu "embalsamamento").
A cidade entrou em polvorosa, se assustou, se acalmou, se alegrou e decidiu canonizar Nenzinho interinamente como padroeiro municipal do sorriso!
Juju teve que ser enterrada numa cova ao lado já que Nenzinho se recusava peremptoriamente a apodrecer!
O túmulo, ou melhor, os túmulos passaram a ser visitados por noivos em busca de bençãos para um casamento duradouro num crescente que hoje leva multidões ao cemitério municipal todos os anos no dia 12 de junho.
São Raimundo era agora tudo que uma cidade nordestina queria ser: uma terra natal de um ex-morador absoluta e incontestavelmente...canonizável!
Algo no entanto, aparecia como uma lacuna indelével na memória dos Nonatenses
Tio Rui, desde então, nunca mais foi visto em São Raimundo.
Talvez haja uma boa razão...
Provavelmente porque soube de uma fila, com sorteio, de pessoas interessadas na sua assistência para o transporte de parentes enfermos até Teresina.
Se curar, ótimo!
Se morrer, volta mas não apodrece!
Santo Dr. Rui
Um Santinho um tanto quanto...
Sumido!
Num intervalo entre as visitas anuais de Tio Rui...
Eis que de repente, não mais que de repente...
Morre subitamente...
Tia Juju
A viúva de Nenzinho!
Espanto, comoção, gritaria, chororô, saudade e toda sorte de sentimento que costuma cercar este tipo de evento.
Passado o choque, o planejamento!
Como desejado, Juju seria enterrada no mesmo lote de Nenzinho o qual, para ceder lugar, teria seus ossos exumados para uma prosaica caixinha de plástico onde ficaria a espera do desencarne efetivo de sua amada e do próximo falecido da família.
Qual não foi a surpresa quando, durante a exumação, se viu que Nenzinho tava lá inteiraço e, pasme, esboçando um leve sorriso! (um provável efeito da retração dos músculos perorais pela concentração absurda de formol usada no seu "embalsamamento").
A cidade entrou em polvorosa, se assustou, se acalmou, se alegrou e decidiu canonizar Nenzinho interinamente como padroeiro municipal do sorriso!
Juju teve que ser enterrada numa cova ao lado já que Nenzinho se recusava peremptoriamente a apodrecer!
O túmulo, ou melhor, os túmulos passaram a ser visitados por noivos em busca de bençãos para um casamento duradouro num crescente que hoje leva multidões ao cemitério municipal todos os anos no dia 12 de junho.
São Raimundo era agora tudo que uma cidade nordestina queria ser: uma terra natal de um ex-morador absoluta e incontestavelmente...canonizável!
Algo no entanto, aparecia como uma lacuna indelével na memória dos Nonatenses
Tio Rui, desde então, nunca mais foi visto em São Raimundo.
Talvez haja uma boa razão...
Provavelmente porque soube de uma fila, com sorteio, de pessoas interessadas na sua assistência para o transporte de parentes enfermos até Teresina.
Se curar, ótimo!
Se morrer, volta mas não apodrece!
Santo Dr. Rui
Um Santinho um tanto quanto...
Sumido!
Um comentário:
Manellis,
Esta hi-estória precisava ser posta em texto.
Ótimo!
Precisamos planejar uma ida de Morpheus a Sto. Amaro para umas conversas com Rodrigo. Há também hi-estórias muito boas.
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