setembro 10, 2008

Urbanos Baianos

Tinham vindo morar em Salvador fazia muito pouco tempo; quer dizer, pouco tempo para nós simples observadores externos. Ele, um baianinho típico destes criados com dengos e mimos alimentado de carinho e comida caseira pela cozinheira que preparou suas refeições desde o seu nascimento até a sua partida para especialização médica em São Paulo. Ela, uma coisa exquisita, e coisas exquisitas não são passíveis de descrição em textos curtos como este pretende ser. Sobre o fato dele ter se casado com ela, só posso imaginar um momento de auto-superação (dela). Como um impetuoso capitão de navio ante a um encalhe iminente, ela acelerou e passou por cima do banco de areia; encantou-o de alguma forma apesar da carência geral em dotes.
Quando ele acabou a residência eles já estavam casados e ela grávida (sabiiida!). Pensaram, refletiram e decidiram vir para Salvador para debaixo da saia da família dele que por certo não deixaria de dar-lhes suporte. Assim que chegaram, ele me ligou; sôfrego pelas risadas e brincadeiras que marcaram nossa amizade desde a infância. Eu não estava quando da sua ligação (ele ligou para casa de meu pai) e já fui ficando emocionado quando meu pai me ligou para transmitir o recado: "Sabe quem ligou e tá doido pra lhe ver? Zé!"
Pode ser até que esta expressão exista em outros rincões do Brasil, mas até hoje só a ouvi na Bahia: "Fulaninho ta doooido pra lhe ver..."
 
Psiquiatria da saudade!

Marcamos uma reunião com o resto da turma e, um mês depois,  lá estávamos nós reunidos, bêbados cantando e remerorando velhas e recontadas histórias como se fossem inéditas e realmente engraçadas
Quer dizer... todos – 1.
A esposa do nosso amigo recém reintegrado estava lá: no canto, feia, enfezada, sem conseguir entender uma palavra de baianês e sóbria com seu vegetarianismo anêmico em meio a uma noitada de maniçobas e dobradinhas!

Olhe que eu falei que estávamos bêbados e ainda assim ela me pareceu feia!

Como num horário eleitoral, após o tempo dos candidatos majoritários,  num lapso de generosidade que só os primatas superiores são capazes de protagonizar, alguém decidiu parar a cantoria, suspender a bebida, pedir uma pizza de beringela e ceder a palavra àquele rascunho de Mortícia Adams.
Maldita hora!
Não sei como nossa amiga poderia ter sido mais indelicada.
Juntando uma tonelada de preconceito com um mês de conivência com os baianos, abriu a boca e meteu o cacete na baianidade, este nosso patrimônio imaterial!
- Mal-educados
- Porcalhões
- Indolentes
- Desorganizados
- Barulhentos
- Incapazes de esperar que as pessoas saiam do elevador para começar a entrar
- Mal conhecem a gente e vão logo pegando
- Culinária primitiva e nociva ao organismo
- Não sabem fazer uma fila, sequer
E foi seguindo até que alguém aumentou o volume do amplificador aproximando-o da caixa de som. A microfonia emitiu um apito de 200dB e deu uma pausa na nossa mal-humorada vegetariana.
Naquela mesma semana Anthony Bourdain tinha visitado os principais pontos gatronômicos típicos de Salvador  e feito altos elogios...ouvir aquilo me magoou!
Boa parte do que ela tomou por mal em nós, é apenas espontaneidade que ela, feia como é, devia comemorar.
Num é?
Após aquela interrupção microfônica, começou, sob a forma de revezamento, um metralhamento da metralhada esposa do nosso embaraçado colega. Todos se revezaram em atenuações mais ou menos agressivas dos insultos emitidos. A situação estava próxima ao VDO do constrangimento quando ela interrompeu a última apologia e pediu uma mínima demonstração de urbanidade dos baianos sob a forma de exemplo, foto ou que quer que fosse.
Praticamente em uníssono, ela ouviu: Deixe comigo!
Depois disso, ocorreu uma pequena pausa no acirramento dos ânimos quebrada pela chegada de uma rodada de cafezinhos feitos pela mãe do anfitrião, que não era eu, no visível intuito de dispersar o grupo e impedir a formação de inimizades.
A conversa voltou amena após o café e já nos despedíamos quando a nossa paulistinha decidiu inflamar a galera:
- Ô baianada, se vocês me derem um exemplo só que seja de comportamento decente de um grupo de baianos, eu não só não falo mais mal de Salvador como deixo o Zezinho vir  beber com vocês, sozinho, até a hora que ele quiser! Tem mais, comerei um prato de bobó de camarão inteiro!
Silêncio sepulcral.
Aquela mocréia não podia tripudiar em cima da gente usando da imunidade parlamentar de ser esposa do Zé.
Dispersamo-nos.
Na primeira segunda-feira após o constrangedor encontro, Rui, um dos amigos presentes me ligou:
- Manellis, sexta-feira nós vamos levar a mulher do Zé para pegar um Bobó no Yemanjá e no sábado vamos beber até rachar o bico, sem ela, é claro!
Não entendi  nada.
- Mas como...
- Depois eu te conto!
Dito e feito. A mulherzinha (generosidade da minha parte) capitulou perante a mais de vinte fotos de pessoas em fila indiana perfeita em diversos pontos de ônibus de Salvador como que a esperar educadamente a sua vez de embarcar no coletivo.
O clima era de vitória e eu, mesmo surpreso, não comentei nada.
O bobó foi comido integralmente como uma penitência pausado apenas por engüios regulares na nossa "cunhadinha" postiça. Algumas fotos (sim, ela permitiu!), um sorriso amarelo e só.
No dia seguinte, cumprindo o roteiro, estávamos nós, desta vez na casa de Rui, dando boas risadas com a mais nova história da turma.
Notando uma certa inquietação do anfitrião, perguntei-lhe como tinha conseguido aquelas fotos que eu julgaria impossíveis se não as tivesse visto com meus próprios olhos.
Ele pigarreou, riu e disse:
- Pô pessoal, pensei que ninguém iria perguntar como eu dei esse cheque-mate.
Pegando as fotos, passou-as entre os presentes e pediu para que tentássemos identificar o motivo daquela urbanidade baiana até então insuspeita mesmo para nós.
As fotos rodaram, foram examinadas e os palpites eram: armação, suborno!
Rui retomou as fotos passou-nas uma-por-uma mais uma vez, deu uma gargalhada e contou o truque:
- Nem armação, nem suborno! Tirei estas fotos entre 13:30 e 14:00. As pessoas estão em filas perfeitas simplesmente porque estão sobre a sombra de um poste!
Genial!
Zé nunca contou a versão original da tomada das fotos e continua a encontrar-se conosco no máximo a cada 15 dias para beber e rir das mesmas histórias de sempre + uma!
Baiano burro nasce morto!

Um comentário:

Manellis disse...

Obrigado pela lembrança, Romeo
O seu texto está salvo no meu e-mail:
manomedeiros@gmail.com
Não perca nenhuma chance de se manifestar.
Um Abraço,

Manellis

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