Costumo dizer que idiotas e gênios são dignos de pena pois são escravos de seus cérebros (geniais ou inexistentes!); cabe aos normais , nem geniais nem imbecis, o verdadeiro deleite de viver; presenteados pelos geniais e atormentado pelos seus contrapartes. Um terceiro tipo de interação aguardaria, na minha cosmogonia, os incautos normais: o anjo negro; uma mulher, uma idéia, um objetivo, uma forma de arte, uma perversão, enfim qualquer coisa capaz e potente para arrebatá-lo sem mesuras para o mundo das almas perdidas às custas de tudo que pudesse até então ter considerado importante na vida. Re-examinando e reburilando esta alegoria pessoal, para com a qual sempre tive algum carinho, me lembrei do relato abaixo feito pelo grande compositor Berlioz; tocante (sem trocadilhos!) e exemplar:
O sonho sinfônico de Berlioz
Dois anos atrás, numa época em que o estado de saúde de minha esposa fazia-me incorrer em muitas despesas, mas ainda havia alguma esperança de melhora, sonhei, uma noite, que estava compondo uma sinfonia, e no sonho eu a ouvi. Ao acordar na manhã seguinte, pude lembrar todo o primeiro movimento, que era um allegro em lá menor em compasso dois por quatro [ ... ] Ia sentarme à mesa para escrevê-lo quando pensei: "Se eu for, serei levado a compor todo o resto. Minhas idéias sempre tendem a expandirse hoje em dia, e essa sinfonia pode muito bem ser numa escala enorme. Passarei talvez três ou quatro meses nesse trabalho (levei sete para escrever Romeu e Julieta), e durante esse tempo não farei nenhum artigo, ou no máximo uns poucos, e minha renda conseqüentemente diminuirá. Quando a sinfonia estiver escrita, estarei fraco o suficiente para ser persuadido pelo meu copista a mandála copiar, e com isso imediatamente entrarei numa dívida de mil ou 1200 francos. Assim que tiver as partituras, serei atormentado pela tentação de ouvir a obra tocada. Darei um concerto, cuja receita mal cobrirá metade dos custos - isso é inevitável hoje em dia. Perderei o que não tenho e ficarei sem dinheiro para cuidar da pobre doente, não poderei mais pagar minhas despesas pessoais nem a estada do meu filho no navio no qual ele em breve embarcará". Estremeci com tais idéias, larguei a pena e pensei: "E daí? Amanhã já terei esquecido!". Naquela noite a sinfonia tornou a aparecer-me e ressoou obstinadamente em minha cabeça. Ouvi o allegro em lá menor distintamente. E mais: pareci vê-lo escrito. Acordei num estado de excitação febril. Cantei o tema para mim mesmo; sua forma e caráter agradaram-me imensamente. Eu estava a ponto de me levantar. Mas os pensamentos que tivera antes voltaram e me seguraram. Quedei -me ali, empedernindo- me contra a tentação, agarrado à esperança de esquecer. Por fim, adormeci; e quando tornei a acordar, a lembrança da música desaparecera para sempre.
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